domingo, 25 de dezembro de 2016

A Musa de Olhos Arregalados – Lições Machadianas

   

                  
              

No princípio não era o verbo. Era a simples cogitação

                   No capitulo  55 de Dom Casmurro, o autor  fala de um soneto que ele nunca fez.

                   Conta que, estando na cama, lhe veio uma exclamação na medida de um verso. Pensou em compor com ele um soneto, embora ainda não fosse uma ideia. De posse desse primeiro verso, pensou em compor os demais, os treze restantes. Sentiu dificuldade em compô-los na sequência natural. Não vinha mais nada, depois do primeiro verso.

                  Como não vinha o segundo verso, naturalmente  nem o terceiro nem o quarto, decidiu arrematar o poema, compondo o último verso – a festejada chave de ouro do soneto, para depois recheá-lo com os doze versos que faltavam.

                O soneto estava, pois, aberto com o primeiro verso e fechado com o último. Contudo, não estava completo. Faltavam os doze versos do miolo. Como eles não vieram, por mais que teimasse, decidiu abandonar a empreitada  e oferecer os dois versos, o do início e o do fim, ao “primeiro desocupado” que os quisesse para que, “Ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em qualquer ocasião de lazer”, enchesse o centro que faltava e desse à luz o soneto inacabado.

                   Eis os dois versos, o de saída e o de chegada, o do princípio e o do fim:

“Oh! flor do céu! Oh! flor cândida e pura!
...................................................................

                   “Perde-se a vida, ganha-se a batalha.”

                    

                   Esse o resumo do capítulo 55. Agora uma reflexão sobre ele.

                  Embora nunca tenha escrito ou feito o soneto, atormentante poema inexistente, por isso verdadeiro fantasma,  mereceu do autor um capítulo inteiro, e extenso, com o título de “Um Soneto”.

                       Ainda que  não o tenha composto, ao falar dele, porém, o Bruxo do Cosme Velho  nos sugere um caminho novo para exercitar na arte da composição. Se não uma aula, ao menos um caminho novo   de como compor ou ensaiar a composição do texto a partir de uma  interjeição – preliminar de uma ideia  ainda  não concebida. Simples “exclamação solta”,  escandida como  primeiro verso:

“Oh! flor do céu! Oh! flor cândida e pura!

                   Ainda não era uma ideia. Era uma singela exclamação vagabunda, na medida de um decassílabo em gaita galega:

Oh! flor do céu! Oh! flor cândida e pura!”.
        
                       Tem-se um verso, mas não se tem uma ideia. O que se quer agora é uma ideia para, desenvolvida em verso, chegar-se ao soneto, agora já trancado com a chave de ouro:

                   “Perde-se a vida, ganha-se a batalha.”

                   A chave antes da fechadura!

                  Assim,  o ponto de partida para a composição do texto não foi  a idéia, que ainda nem existia. Para começo bastou a inquietação, as cócegas. Por vezes nem cócegas -  uma simples comichão basta.   A idéia vem depois. Quem diz é ele: “Quanto à idéia, o primeiro verso não era ainda uma idéia, era uma exclamação, a idéia viria depois.” No princípio ainda não era o verbo, mas   uma interjeição inquietante e  medida, em forma  de verso:
“Oh! flor do céu! Oh! flor cândida e pura!

                      Prossegue a busca: revolve-se a mente, excogita-a na procura dessa ideia  que esvoaça e não pousa. Enquanto não pousa, vai-se poetando insone,  sem cessar   e vigilante, em longa  noite indormida,   verdadeira “musa de olhos arregalados”.

                   Alvoroçado e inquieto, ferroado pelo verso interjeitivo e solitário,  debate em busca da idéia, ou conceito, que lhe permita desenvolver as estrofes e  compor o  soneto imaginado:
                               “Tinha o alvoroço da mãe que sente o filho,...”.

                   Contudo, depois de virar e revirar,  de cavar muito, de revolver e excogitar, eis que surge a ideia embrionária. Aleluia!

                   Caminhou-se, pois, do embrião ao signo; da interjeição ao conceito:

                  “Quem era a flor? Capitu, naturalmente.. mas podia ser outro conceito.” Mas conceito!
        
                             Pariu-se pois a ideia!

                       Aflorada  a ideia,  é preciso agora  afagá-la, acalentá-la e querer desenvolvê-la.  Na metáfora machadiana, é preciso sentir cócegas e querer coçar: “...as cócegas pediam unhas, e eu coçava-me com a alma”.

                       Começa-se pois a coçar!

                   Para desenvolver a idéia, era preciso definir a espécie, ou a forma. Machado optou pelos versos dispostos em soneto: “...mas afinal, ative-me ao soneto.”
                  
                            A idéia porém teimava em não produzir frutos. Empacou-se e não arredou pé: “...mas nem assim vinha mais nada.

                            Ora, raciocinou ele,  como a  opção foi por um soneto, e como os sonetos bem elaborados se fecham com chave de ouro, representada pelo último verso bem arquitetado, por que não fundir a chave antes da fechadura, elaborando um verso bem urdido, que trancasse o poema de forma elegante, e retornando em  marcha triunfal de volta até esbarrar no ponto de partida: “Oh! flor do céu...

                            Chegou  a imaginar que era praxe proceder assim:

                            “...imaginei que tais chaves eram fundidas antes da fechadura.”

                            Assim procedeu e, depois de muito lavrar e garimpar, saiu a chave da “perfeição louvada”, não mais na espécie do decassílabo moinheiro ou da gaita galega. Agora decassílabo heróico:

                            “Perde-se a vida, ganha-se a batalha.”

                            Pronto. Estavam enfim estabelecidos os limites do soneto! Um grito d´alma na abertura, como convém às interjeições, e um retumbante  fechamento heróico, uma chave de ouro, como convêm aos sonetos.
                            E agora!?
                            Só faltava a fechadura com seu miolo!
                            E ela não veio!

                            Os doze versos medulares não vieram. Nem mais a gaita da ternura para prosseguir do primeiro verso ao último, nem a  tuba belicosa para recuar do último ao primeiro. Empacou-se  e a chave de ouro trancou o nada. Nem soneto nem panegírico: “Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos.” Nem os galegos nem os heroicos.

                            Por amor dos dois versos solitários, doou-os ele, o Bruxo,  ao primeiro desocupado que os quisesse, para prossegui-los em dia de chuva ou na preguiça do ócio domingueiro

                            Assim, se algum leitor destas garatujas nutrir algum sentimento por uma “flor do céu”, ainda que não tão pura e nem tão cândida,  e se por ela apostar a vida para ganhar a batalha, pode se apropriar dos dois versos do bruxo e,  com eles, nem compor mas transcrever o soneto metafísico que, por metafísico, na lição do autor,  já deve existir feito; tudo sem o crime  de plágio, pela expressa  outorga do titular do direito, o ermitão do Cosme Velho.
                           

                            Há umas poucas condições impostas pelo malogrado Bruxo e reduzidas a termo, para a cessão dos versos: Ser o cessionário ou  apropriador desocupado; laborar ao domingo, ou em dia de chuva ou ainda na roça. Se for em dia de chuva ou na roça, o texto não fala  na  necessidade de ser domingo.