terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Transitividade do substantivo

             Adriano da Gama Cury, com a acuidade que lhe é própria, ao tratar das orações subordinadas, em Novas Noções da Análise Sintática, Ática, 2ª edição, pág.77, levanta um caso curioso de sintaxe analítica, onde se lê:

“Obs. 1 - Há um outro tipo de orações subordinadas, formalmente idênticas às substantivas conexas: conjunção integrante ou verbo no infinitivo precedidos(sic)* de preposição:

         'já era tempo [de que te emendasses]'; 'Já era tempo [de te emendares].';
         'É significativo o fato [de que ele não tenha protestado].'

         Em face dos exemplos, leciona:


         “A 1ª e a 2ª parecem-nos adverbiais de fim; a 3ª, adjetiva.”

         
         Prossegue:

         “Não nos parecem completivas nominais, dada à natureza não transitiva dos substantivos a que se ligam: correspondem antes, pela função, a adjuntos adverbiais e adnominais formados de preposição mais substantivo. Rigorosamente, portanto, têm o valor de locução adverbial ou adjetiva, com núcleo substantivo(sic), motivo da sua identidade formal com as substantivas. Mas como a classificação há de ser funcional, devem, a nosso ver, ser arroladas entre as adverbiais e as adjetivas.”

            A 1ª e a 2ª de que fala o autor são “de que te emendasses” e “de te emendares

         Não me parece que sejam adverbiais, pois não são orações determinantes do conectivo verbal “era” da denominada oração principal. São determinantes do predicado “era tempo”, cujo núcleo é o substantivo “tempo”, e não o verbo de ligação “era”. Reitere-se, ainda que ociosamente, que  “era” é um conectivo verbal. A sua parte conectiva não entra na determinação. As orações determinantes alcançam na sua totalidade o substantivo “tempo”. Quanto ao  conectivo verbal, se se alcançasse ele, alcançá-lo-ia  apenas no que ele tem de verbo: o tempo e o modo. Nada além, uma vez que não é ofício do advérbio  determinar conectivo.
         Voltemos o foco para a transitividade ou não do substantivo “tempo”, que pode lançar reflexo na classificação das orações subordinadas.

            Quando se diz a um interlocutor:

       - “é ou era tempo”, a pergunta que vem dele, interlocutor,  é:

        -“tempo de quê?”. O interlocutor constrói a resposta partindo do substantivo “tempo”. Nunca partindo  do verbo de ligação “é”:  “é de quê?”.  No máximo, “é tempo de quê?”. A pergunta  razoável não dispensa o substantivo  “tempo”.
        
     Logo, a subordinada, como determinante, está estreitamente ligada ao seu determinado, que outro não é senão o substantivo “tempo”.
         
         Vem agora a indagação:  o substantivo “tempo” é ou  não é transitivo?
        
      O Prof. Gama Kury  afirma ser intransitivo. Diz  ele, ipsis verbis:  “Não nos parecem completivas nominais,. dada à natureza não transitiva dos substantivos a que se ligam”.(Destacamos). Os substantivos são “tempo” e “fato”; “tempo” do primeiro exemplo e “fato” do segundo.

         O mestre conclui afirmando que a oração subordinada não pode ser completiva nominal porque o substantivo “tempo” não é transitivo.

         Vem agora a pergunta: a transitividade do substantivo não seria relativa, e não absoluto, assim como o é a dos verbos?

          Quanto aos verbos, já nem se fala em verbo intransitivo ou transitivo. Fala-se no emprego intransitivo ou não. Como exemplo, podemos citar os verbos fumar, trabalhar, estudar, morrer, viver, etc.:

          1) Marcos fuma (tem o vício de fumar);
          2) Paulo trabalha  (é trabalhador); 
          3) Túlia estuda (é estudante);
           4) O soldado morreu (já não vive);
           5) Cícero ainda vive (está vivo).

           Por outro lado:

           a) Marcos fuma cigarro de palha;
           b) o marceneiro trabalha a madeira;
           c) Túlio estuda piano;
           d) Túlia  morreu morte santa;
           e) Marcos vive vida digna.

         De 1 a 5 os verbos são intransitivos; já de a a e os mesmos verbos são transitivos.
         Será que essa prerrogativa é só dos verbos ou os nomes também gozam dela?

            Salvo melhor juízo, acreditamos que o mesmo pode-se dar com o nome substantivo.  

            Que digam os sábios da escritura!
           




terça-feira, 18 de abril de 2017

Os Compostos e a Unidade Sintagmática

Singela homenagem a Lindley Cintra e a Celso Cunha.


Lindley Cintra e Celso Cunha, na sua magistral obra, A Nova Gramática do Português Contemporâneo*, tratando da formação de palavras por composição, no título FORMAÇÃO DE PALAVRAS POR COMPOSIÇÃO, lecionam:

1. “A composição, já o sabemos, consiste em formar uma nova palavra pela união de dois ou mais radicais. A palavra composta apresenta sempre uma ideia única e autônoma, muitas vezes dissociada das noções expressas pelos seus componentes. Assim, criado-mudo é o nome de um móvel; mil-folhas, o de um doce; vitória-régia, o de uma planta; pé-de-galinha1, o de uma ruga no canto externo dos olhos”. Acrescente-se “pé de moleque”, nome de um doce.

Como se vê, os autores dão ênfase à unidade semântica do composto: “A palavra composta apresenta sempre uma ideia única...”

Por sinal, essa ideia única é um dos elementos básicos da regra de uso do hífen nos compostos de nome (substantivo, adjetivo, numeral) ou verbo, do atual acordo ortográfico. Está lá, na sua base XV:  “unidade sintagmática e semântica”.

O que confunde, contudo o leitor é a lição contida logo na página seguinte, no n.º 2, sob o subtítulo TIPOS DE COMPOSIÇÃO, do título FORMAÇÃO DE PALAVRAS COMPOSTAS, da citada obra de Cintra e Cunha, assim explicitado:

2. “Quanto ao sentido, distingue-se numa palavra composta (destacamos) o elemento DETERMINADO, que contém a ideia geral, do DETERMINANTE, que encerra a noção particular. Assim, em escola-modelo, o termo escola é o DETERMINADO, e modelo o DETERMINANTE. Em mãe-pátria, ao inverso, mãe é o DETERMINANTE, e pátria o DETERMINADO”.

Esse entendimento já põe por terra a unidade semântica: um determinante, uma unidade semântica; um determinado, outra unidade semântica. Em conseqüência, desmorona também a unidade sintagmática.

Por outro lado, nada impede que se veja na expressão duas unidades  semânticas, uma na função de determinante e a outra na de determinado. Só que aí não teremos mais um substantivo composto (uma unidade semântica), mas um substantivo - o determinado, e um adjetivo - o determinante. Duas unidades semânticas. Por esse ângulo se entende a divergência que se verifica (segundo renomado professor) entre Aurélio e Houaiss, quanto à classificação de  pôr-do-sol (agora sem hífen):  um substantivo, para Aurélio;  uma locução, para Houaiss. 

Salvo melhor juízo, esse entendimento conflita com o exposto no tópico 1. 

Como ficaremos em “dedo duro”? Se duro determinar dedo, não teremos mais um composto, mas uma locução; não teremos mais um delator, mas um dedo que está duro.  

O que faz o composto é a unidade semântica aliada à unidade sintagmática.  A composição se vale de mais de um sintagma lexical, para compor a unidade sintagmática maior.

Ao compor a unidade sintagmática maior, pelo princípio dos constituintes imediatos,  apaga-se a lembrança das unidades sintagmáticas menores. 
Uma grotesca metáfora pode clarear. Existia, não sei se ainda há, uma bebida composta de café e leite, chamada “pingado”.  No composto de café com leite, no “pingado”, não se sentia o sabor do café e o sabor do leite, isoladamente. Sentia-se o sabor do composto, do “pingado”. Somente o gato da lenda, que não gostava de café, e conseguia, quando lhe serviam a mistura, beber apenas o leite abandonando o café. O café com leite não era um composto para ele, não era um “pingado”,  pois seus elementos eram desmembráveis, cada qual com seu sabor.

São esquecidos, pois, no composto, os já apagados sentidos dos elementos da composição. Por isso as condições da base XV do Acordo Ortográfico: Constituir “unidade sintagmática e semântica”.

Em face dessa unidade, sintagmática e semântica, o conjunto também se torna uma unidade - unidade lexical, ou seja, um nome. E como nome, um sintagma nominal.

Já se se tomar a expressão “escola modelo” como dois nomes, como querem os autores,  um nome determinante, “modelo”,  e outro nome determinado, “escola”,  aí teremos dois sintagmas lexicais relativamente menores (escola e modelo), compondo o sintagma maior ou complexo - o locucional (escola modelo). Três sintagmas, portanto: dois lexicais e um locucional. Se é assim, evaporou-se a unidade sintagmática.

É simples: se é uma locução, ipso facto não é uma composição; e se não é uma composição, então não é um substantivo composto.

É uma locução, é um sintagma locucional constituído de dois sintagmas lexicais. Logo, três sintagmas, dois das unidades (agora formas mínimas) e um terceiro, o da unidade linguística superior, de que fala Saussure:  “combinação de formas mínimas numa unidade linguística superior”.

Registre-se, por derradeiro, que o composto não se acha blindado da determinação.  Pode ele muito bem ser determinado por um morfema, material ou zero, ou mesmo por um nome, desde que estranho aos elementos da composição. Por exemplo: “dedos-duros”, determinante ou morfema /s/ de número. “Dedo-duro”, determinante ou morfema zero de número. Desprezível “dedo-duro”, determinante lexical (semantema) de espécie. São determinações que não agridem a unidade semântica nem a sintagmática, resguardadas pela base  XV do Acordo Ortográfico.



* - Cintra - Lindley et al. Gramática do Português Contemporâneo. Lexicon. Rio, 2007.

domingo, 22 de janeiro de 2017

LAVA A JATO”;  “LAVA JATO”;   “LAVA-JATO”.



Uma homenagem à D.ª Odete Starki Moro, não por ser mãe do Juiz Moro, mas por ser professora de Língua Portuguesa.
Fala-se que o Juiz Moro não é muito fiel aos pendores da senhora sua mãe, Dª Odete, relativamente à submissão aos rigores das leis gramaticais, mesmo porque ditas leis nem sempre se harmonizam com a espontaneidade dos usos linguísticos, maiormente os da fala oral.
Professora de Língua Portuguesa, hoje aposentada, ao se referir ao nome da ruidosa e mais bem sucedida operação de caça a corruptos, a genitora do magistrado, segundo consta,  não deixa de inserir a preposição “a” na fala escrita, e redige “lava a jato”, enquanto o incansável juiz, fazendo coro com a mídia, opta por  “lava jato”.
Não sei se a notícia é verdadeira, mas como não prejudica, tomei-a como tema dessas digressões sobre o hífen.
Se não molesta, permite aos interessados manifestarem-se sobre o tema,  em especial  Dª Odete,  estudiosa das questões da língua pátria.
Vamos ao hífen-  por ora sem ferir o mérito, divagando em  preliminares.
Nas origens, ou seja, como nome do estabelecimento de lavagem de veículo, o composto era formado por um verbo (lavar), para expressar a atividade, e uma locução adverbial (preposição mais substantivo), compondo o adjunto adverbial de modo (a jato), para expressar  o modo como se lavaria o veículo: “a jato”, ou seja, rapidamente.
Aqui é de rigor a presença da preposição, para constituir a expressão adverbial, pois o substantivo “jato”, por si, não tem a força circunstancial própria do advérbio, ou das locuções dessa  natureza .
Até agora, falamos da primeira  expressão, “lava a jato”, redação e sentido.
Vamos à segunda Expressão, “lava jato”. Se nos prendermos à grafia, e amarrarmos o sentido a ela, aí, numa literalidade absurda, pode parecer que iremos, em consonância com a transitividade do verbo lavar, explicitar o paciente.  Então, o que era adjunto de modo (modo de lavar), converte-se em objeto direto. Lava o quê? O jato, é a resposta. Lava o avião “jato” ou lava absurdamente o jato de água que se esguicha.  Veja a que absurdo nos levaria a análise presa à grafia. Sabemos que não é bem assim.
Vamos agora soltar as peias da grafia e nos debruçar sobre a fala, realidade viva da língua.
Mesmo com o sentido original, de lavagem de carro, em que a grafia obriga a presença da preposição para constituir o advérbio, a fala era e é uma só: lava jato. Isso porque, pelo fenômeno da crase (fusão de dois sons vocálicos idênticos e consecutivos), a preposição “a” do advérbio se fundiria com a vogal temática do verbo (lavA) e não se ouviriam dois “as”, um da vogal temática “lavA” e o outro da preposição  “a jato”: Lav-A   A.
Em resumo, tanto em “lava jato” como em “lava a jato”, conforme já explicitado, a fala é uma só: “lava jato”. Recomenda-se apenas que se grafe “lava a jato” - quando locução, i. é, guardando o sentido original. Aí o objeto direto é veículo, omitido e subentendido por elipse: “Lava (o veículo) a jato”
Enfim o hífen.
Em primeiro lugar, tanto “lava a jato” quanto “lava jato” desgarram-se do sentido primitivo de lavagem de carro. Agora  significam, uma e outra, operação de combate à corrupção.
A expressão inteira é um substantivo composto e não uma locução.
Por que substantivo composto e não locução?
Como locução, cada palavra da expressão guarda o seu significado. O significado de “lavar”, contido no verbo, e o de modo, modo rápido, contido no advérbio “a jato”.
Apenas para ilustrar, seria como a expressão “dedo duro”. Um sentido para o substantivo “dedo” e outro para o adjetivo “duro”. Um dedo que está duro – locução.
Já como substantivo composto, não há um sentido para “lava” e outro para “jato”. Há um sentido só para a expressão inteira: operação de caça aos corruptos. Como em “dedo-duro”- delator e em “pé de moleque”, doce. É a conhecida  unidade semântica.
Na formação do substantivo composto pode entrar uma preposição ou outros elementos de ligação. Exemplos: “maria vai com as outras”;  “pé de moleque”; “dia a dia”; “vai e vem”, etc. Todos sem hífen, conforme se justificará a seguir.
Finalmente, para a grafia de “lava a jato”ou “lava-jato”, vamos ver o que diz o Acordo Ortográfico  em vigor, na sua base XV
Acordo Ortográfico de 1990,  promulgado pelo Decreto 6583.
a) Base XV    
Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem  uma unidade sintagmática e semântica e contém acento próprio...”
Pois bem, “lava a jato” é um composto que satisfaz a todos os requisitos, com exceção de um: “...que não contenha forma de ligação”.
“Lava a jato” não satisfaz a exigência. Contém forma de ligação - a preposição “a”; mas nem por isso deixa de ser um composto. Satisfaz a todos os outros elementos. Apenas não se grafa com hífen. Grafa-se “lava a jato”.
Agora “lava jato”.  Satisfaz a todos os requisitos da base XV: o conjunto possui unidade semântica, caça aos corruptos; possui unidade sintagmática, por força da unidade semântica,  um determinante e um determinado, não contém formas de ligação. Grafa-se então com hífen: “lava-jato”.
Enfim, para que serviu o hífen? Na pronúncia não serviu para nada. Ninguém pronuncia o hífen. Nem na hora que fala, o falante  alerta o ouvinte ou ressalva que há hífen naquilo que está falando. O hífen na pronúncia é de efeito zero.
Agora o hífen na grafia. Na grafia, no caso presente, serve para distinguir um composto de uma locução. Somente para isto. Nada além. O benefício é muito pequeno, em face do custo. É quase uma infernização, ou, como diria Shakespeare, much ado about nothing.