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No princípio
não era o verbo. Era a simples cogitação
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No
capitulo 55 de Dom Casmurro, o
autor fala de um soneto que ele nunca
fez.
Conta que,
estando na cama, lhe veio uma exclamação na medida de um verso. Pensou em
compor com ele um soneto, embora ainda não fosse uma ideia. De posse desse
primeiro verso, pensou em compor os demais, os treze restantes. Sentiu
dificuldade em compô-los na sequência natural. Não vinha mais nada, depois do
primeiro verso.
Como não vinha
o segundo verso, naturalmente nem o
terceiro nem o quarto, decidiu arrematar o poema, compondo o último verso – a
festejada chave de ouro do soneto,
para depois recheá-lo com os doze versos que faltavam.
O soneto estava,
pois, aberto com o primeiro verso e fechado com o último. Contudo, não estava
completo. Faltavam os doze versos do miolo. Como eles não vieram, por mais que
teimasse, decidiu abandonar a empreitada
e oferecer os dois versos, o do início e o do fim, ao “primeiro
desocupado” que os quisesse para que, “Ao domingo, ou se estiver
chovendo, ou na roça, em qualquer ocasião de lazer”, enchesse o centro
que faltava e desse à luz o soneto inacabado.
Eis os dois
versos, o de saída e o de chegada, o do princípio e o do fim:
“Oh! flor do céu! Oh! flor cândida e pura!”
...................................................................
“Perde-se a vida, ganha-se a batalha.”
Esse o resumo
do capítulo 55. Agora uma reflexão sobre ele.
Embora nunca
tenha escrito ou feito o soneto, atormentante poema inexistente, por isso
verdadeiro fantasma, mereceu do autor um
capítulo inteiro, e extenso, com o título de “Um Soneto”.
Ainda
que não o tenha composto, ao falar dele,
porém, o Bruxo do Cosme Velho nos sugere
um caminho novo para exercitar na arte da composição. Se não uma aula, ao menos
um caminho novo de como compor ou
ensaiar a composição do texto a partir de uma
interjeição – preliminar de uma ideia
ainda não concebida. Simples “exclamação solta”, escandida como primeiro verso:
“Oh! flor do céu! Oh! flor cândida e pura!”
Ainda
não era uma ideia. Era uma singela exclamação vagabunda, na medida de um
decassílabo em gaita galega:
“Oh! flor do céu! Oh! flor cândida e pura!”.
Tem-se um verso, mas não se tem uma ideia. O
que se quer agora é uma ideia para, desenvolvida em verso, chegar-se ao soneto,
agora já trancado com a chave de ouro:
“Perde-se a vida, ganha-se a batalha.”
A
chave antes da fechadura!
Assim, o ponto de partida para a
composição do texto não foi a idéia, que
ainda nem existia. Para começo bastou a inquietação, as cócegas. Por vezes nem cócegas -
uma simples comichão basta. A
idéia vem depois. Quem diz é ele: “Quanto
à idéia, o primeiro verso não era ainda uma idéia, era uma exclamação, a idéia
viria depois.” No princípio ainda não era o verbo, mas uma interjeição inquietante e medida, em forma de verso:
“Oh! flor do céu! Oh! flor cândida e pura!”
Prossegue a busca: revolve-se a mente, excogita-a na procura dessa
ideia que esvoaça e não pousa. Enquanto
não pousa, vai-se poetando insone, sem
cessar e vigilante, em longa noite indormida, verdadeira “musa de olhos arregalados”.
Alvoroçado
e inquieto, ferroado pelo verso interjeitivo e solitário, debate em busca da idéia, ou conceito, que
lhe permita desenvolver as estrofes e
compor o soneto imaginado:
.
“Tinha
o alvoroço da mãe que sente o filho,...”.
Contudo,
depois de virar e revirar, de cavar
muito, de revolver e excogitar, eis que surge a ideia embrionária. Aleluia!
Caminhou-se,
pois, do embrião ao signo; da interjeição ao conceito:
“Quem era a flor? Capitu, naturalmente.. mas
podia ser outro conceito.” Mas conceito!
Pariu-se pois a ideia!
Aflorada a ideia,
é preciso agora afagá-la,
acalentá-la e querer desenvolvê-la. Na
metáfora machadiana, é preciso sentir cócegas e querer coçar: “...as cócegas pediam unhas, e eu coçava-me com
a alma”.
Começa-se pois a coçar!
Para
desenvolver a idéia, era preciso definir a espécie, ou a forma. Machado optou
pelos versos dispostos em soneto: “...mas
afinal, ative-me ao soneto.”
A idéia porém teimava em não produzir
frutos. Empacou-se e não arredou pé: “...mas
nem assim vinha mais nada.”
Ora, raciocinou ele, como a
opção foi por um soneto, e como os sonetos bem elaborados se fecham com chave de ouro, representada pelo último
verso bem arquitetado, por que não fundir a chave antes da fechadura,
elaborando um verso bem urdido, que trancasse o poema de forma elegante, e
retornando em marcha triunfal de volta
até esbarrar no ponto de partida: “Oh!
flor do céu...”
Chegou
a imaginar que era praxe proceder assim:
“...imaginei que tais chaves eram fundidas antes
da fechadura.”
Assim
procedeu e, depois de muito lavrar e garimpar, saiu a chave da “perfeição louvada”, não mais na espécie
do decassílabo moinheiro ou da gaita
galega. Agora decassílabo heróico:
“Perde-se a vida, ganha-se a batalha.”
Pronto.
Estavam enfim estabelecidos os limites do soneto! Um grito d´alma na abertura,
como convém às interjeições, e um retumbante
fechamento heróico, uma chave de
ouro, como convêm aos sonetos.
E
agora!?
Só
faltava a fechadura com seu miolo!
E
ela não veio!
Os
doze versos medulares não vieram. Nem mais a gaita da ternura para prosseguir
do primeiro verso ao último, nem a tuba
belicosa para recuar do último ao primeiro. Empacou-se e a chave
de ouro trancou o nada. Nem soneto nem panegírico: “Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos.”
Nem os galegos nem os heroicos.
Por
amor dos dois versos solitários, doou-os ele, o Bruxo, ao primeiro desocupado que os quisesse, para
prossegui-los em dia de chuva ou na preguiça do ócio domingueiro
Assim,
se algum leitor destas garatujas nutrir algum sentimento por uma “flor
do céu”, ainda que não tão pura e nem tão cândida, e se por ela apostar a vida para ganhar a batalha,
pode se apropriar dos dois versos do bruxo e,
com eles, nem compor mas transcrever o soneto metafísico que, por
metafísico, na lição do autor, já deve
existir feito; tudo sem o crime de
plágio, pela expressa outorga do titular
do direito, o ermitão do Cosme Velho.
Há
umas poucas condições impostas pelo malogrado
Bruxo e reduzidas a termo, para a cessão dos versos: Ser o cessionário ou apropriador desocupado; laborar ao domingo,
ou em dia de chuva ou ainda na roça. Se for em dia de chuva ou na roça, o texto
não fala na necessidade de ser domingo.