terça-feira, 18 de abril de 2017

Os Compostos e a Unidade Sintagmática

Singela homenagem a Lindley Cintra e a Celso Cunha.


Lindley Cintra e Celso Cunha, na sua magistral obra, A Nova Gramática do Português Contemporâneo*, tratando da formação de palavras por composição, no título FORMAÇÃO DE PALAVRAS POR COMPOSIÇÃO, lecionam:

1. “A composição, já o sabemos, consiste em formar uma nova palavra pela união de dois ou mais radicais. A palavra composta apresenta sempre uma ideia única e autônoma, muitas vezes dissociada das noções expressas pelos seus componentes. Assim, criado-mudo é o nome de um móvel; mil-folhas, o de um doce; vitória-régia, o de uma planta; pé-de-galinha1, o de uma ruga no canto externo dos olhos”. Acrescente-se “pé de moleque”, nome de um doce.

Como se vê, os autores dão ênfase à unidade semântica do composto: “A palavra composta apresenta sempre uma ideia única...”

Por sinal, essa ideia única é um dos elementos básicos da regra de uso do hífen nos compostos de nome (substantivo, adjetivo, numeral) ou verbo, do atual acordo ortográfico. Está lá, na sua base XV:  “unidade sintagmática e semântica”.

O que confunde, contudo o leitor é a lição contida logo na página seguinte, no n.º 2, sob o subtítulo TIPOS DE COMPOSIÇÃO, do título FORMAÇÃO DE PALAVRAS COMPOSTAS, da citada obra de Cintra e Cunha, assim explicitado:

2. “Quanto ao sentido, distingue-se numa palavra composta (destacamos) o elemento DETERMINADO, que contém a ideia geral, do DETERMINANTE, que encerra a noção particular. Assim, em escola-modelo, o termo escola é o DETERMINADO, e modelo o DETERMINANTE. Em mãe-pátria, ao inverso, mãe é o DETERMINANTE, e pátria o DETERMINADO”.

Esse entendimento já põe por terra a unidade semântica: um determinante, uma unidade semântica; um determinado, outra unidade semântica. Em conseqüência, desmorona também a unidade sintagmática.

Por outro lado, nada impede que se veja na expressão duas unidades  semânticas, uma na função de determinante e a outra na de determinado. Só que aí não teremos mais um substantivo composto (uma unidade semântica), mas um substantivo - o determinado, e um adjetivo - o determinante. Duas unidades semânticas. Por esse ângulo se entende a divergência que se verifica (segundo renomado professor) entre Aurélio e Houaiss, quanto à classificação de  pôr-do-sol (agora sem hífen):  um substantivo, para Aurélio;  uma locução, para Houaiss. 

Salvo melhor juízo, esse entendimento conflita com o exposto no tópico 1. 

Como ficaremos em “dedo duro”? Se duro determinar dedo, não teremos mais um composto, mas uma locução; não teremos mais um delator, mas um dedo que está duro.  

O que faz o composto é a unidade semântica aliada à unidade sintagmática.  A composição se vale de mais de um sintagma lexical, para compor a unidade sintagmática maior.

Ao compor a unidade sintagmática maior, pelo princípio dos constituintes imediatos,  apaga-se a lembrança das unidades sintagmáticas menores. 
Uma grotesca metáfora pode clarear. Existia, não sei se ainda há, uma bebida composta de café e leite, chamada “pingado”.  No composto de café com leite, no “pingado”, não se sentia o sabor do café e o sabor do leite, isoladamente. Sentia-se o sabor do composto, do “pingado”. Somente o gato da lenda, que não gostava de café, e conseguia, quando lhe serviam a mistura, beber apenas o leite abandonando o café. O café com leite não era um composto para ele, não era um “pingado”,  pois seus elementos eram desmembráveis, cada qual com seu sabor.

São esquecidos, pois, no composto, os já apagados sentidos dos elementos da composição. Por isso as condições da base XV do Acordo Ortográfico: Constituir “unidade sintagmática e semântica”.

Em face dessa unidade, sintagmática e semântica, o conjunto também se torna uma unidade - unidade lexical, ou seja, um nome. E como nome, um sintagma nominal.

Já se se tomar a expressão “escola modelo” como dois nomes, como querem os autores,  um nome determinante, “modelo”,  e outro nome determinado, “escola”,  aí teremos dois sintagmas lexicais relativamente menores (escola e modelo), compondo o sintagma maior ou complexo - o locucional (escola modelo). Três sintagmas, portanto: dois lexicais e um locucional. Se é assim, evaporou-se a unidade sintagmática.

É simples: se é uma locução, ipso facto não é uma composição; e se não é uma composição, então não é um substantivo composto.

É uma locução, é um sintagma locucional constituído de dois sintagmas lexicais. Logo, três sintagmas, dois das unidades (agora formas mínimas) e um terceiro, o da unidade linguística superior, de que fala Saussure:  “combinação de formas mínimas numa unidade linguística superior”.

Registre-se, por derradeiro, que o composto não se acha blindado da determinação.  Pode ele muito bem ser determinado por um morfema, material ou zero, ou mesmo por um nome, desde que estranho aos elementos da composição. Por exemplo: “dedos-duros”, determinante ou morfema /s/ de número. “Dedo-duro”, determinante ou morfema zero de número. Desprezível “dedo-duro”, determinante lexical (semantema) de espécie. São determinações que não agridem a unidade semântica nem a sintagmática, resguardadas pela base  XV do Acordo Ortográfico.



* - Cintra - Lindley et al. Gramática do Português Contemporâneo. Lexicon. Rio, 2007.