TERMOS JURÍDICOS - SENTIDO ETIMOLÓGICO(II)
Pedro Junqueira Bernardes
Ave,
Continuamos o estudo de alguns termos jurídicos, reavivando o seu sentido etimológico. Procuramos seguir a ordem alfabética, fiéis ao critério estabelecido no início do trabalho.
BIANDRIA – “Casamento de uma mulher com dois homens simultaneamente”(1)
Para designar o mesmo ato, no sentido genérico, temos BIGAMIA. Segundo De Plácido e Silva, a BIGAMIA é o estado da pessoa que se casou duas vezes.
Não é bem assim. Uma pessoa pode-se casar duas vezes e não praticar a bigamia, desde que os casamentos sejam sucessivos, não coexistentes. Pressuposto da bigamia é a duplicidade de casamentos, ou melhor, a simultaneidade de dois casamentos. Melhor ainda: a coexistência de dois casamentos. No desenvolvimento do verbete, De Plácido e Silva esclarece: “a bigamia é caracterizada pela existência simultânea de dois casamentos ou matrimônios...”
O hibridismo de BIANDRIA talvez se deva à analogia com BIGAMIA, também híbrido. Ora, o bi, idéia de dois, é prefixo latino, e o radical, tanto de bigamia, quanto de biandria, é grego: γαμος e ανηρ - ανδρος , respectivamente. Como se trata de termo técnico, erudito, por isso mesmo de uso restrito, melhor seria a formação regular, ou seja, expressar a idéia de dois através do prefixo grego δις e formar DIANDRIA, muito pouco usado, porque a preferência é pelo genérico BIGAMIA. Quanto a este, é preferível deixar o hibridismo como está, já consagrado, e que jamais cederia lugar para DIGAMIA.
O rendimento enfim do termo BIANDRIA (bi, latim dois e andros, grego homem) é praticamente zero. O hibridismo não tem curso, pelo que sequer chega a arranhar a norma gramatical.
Interessante é que se criou do gênero bigamia o específico único biandria (casamento de uma mulher com dois homens simultaneamednte), sem a oposição biginia, de γυνη –αίχος (mulher), para designar especialmente o casamento de um homem com duas mulheres simultaneamente). O certo que se trata de artificialismo que não se vingou. O casamento simultâneo, tanto de uma mulher com dois homens, quanto de um homem com duas mulheres, vai para a vala comum da BIGAMIA.
Registre-se, por fim, que não registram o termo Aurélio, Nascentes, Séguier, Antônio Geraldo da Cunha, Adolfo Coelho, Morais. Consigna-o Piragibe e Piragibe (1).
2-BÍNUBO - “Pessoa que se casa duas vezes, sendo o segundo matrimônio contraído quando já extinto o primeiro” (1).
Segundo De Plácido e Silva, é aplicado para significar o fato de um novo casamento, ou casamento sucessivo, ou seja, para indicar a pessoa que se casou duas vezes (2).
Rigorosamente não significa “pessoa que se casa duas vezes”, (Piragibe) e nem “o fato de um novo casamento”, De Plácido e Silva. Significa casado pela segunda vez, pois o vocábulo não deriva de “bis, dois, e nubere, casar”. Deriva de bis, dois e nubus ou nuptus, particípio de nubo(3), de valor adjetivo, casado.
Curiosa é a etimologia da palavra. É a mesma de nuvem. Nubes, nubis, significa nuvem, sombra, infortúnio. Em grego é nephele. Da mesma raíz, pois, de nubes, nubis (nuvem), o latim possui o verbo nubo, nubis, nupsi, nuptum, nubere, com o sentido de cobrir com o véu, velar, cobrir, como cobrem as nuvens, casar, em relação às mulheres. A translação, segundo Arraes (4), proveio do fato de usarem as noivas o véu. Ainda de acordo com o mesmo filólogo, ocorreu o mesmo com o grego, onde nephéle é nuvem, e nymphe é noiva. Nympheuma, casamento e nympheuomai, casar.
A raiz é bem representada: núpcias - casamento; conúbio - casamento; núbil - casadoura, que está em idade de casar; nubiloso - nebuloso; nubente - que é noivo ou noiva, etc.
Conforme se viu, difere de bígamo, por significar casamento sucessivo.
3-BROCARDO - De Plácido e Silva apenas define: “Denominação dada aos adágios ou aforismos jurídicos” (2). Antônio Geraldo da Cunha dá ao vocábulo foros ou privilégio de axioma: “Axioma jurídico” (5).
Do latim brocardus. Por não pertencer ao léxico clássico, os dicionários latinos não o registram. Trata-se de vocábulo do latim medieval, cuja origem é o antropônimo Burckard, bispo de Worms, nome alemão de Vórmia ou Vormácia, cidade à beira do Reno. Esse bispo, Burckard, compilou, no século XI, vinte livros de regras eclesiásticas. As regras devem ter-se tornado máximas e consagrado o nome do bispo, que passou a sinônimo de aforismo. É um verdadeiro caso de metonímia.
4 - CABECEL - “Nome que se dá ao foreiro, que, por designação dos demais foreiros ou do próprio senhorio direto, fica responsável perante este pela cobrança de todos os direitos e foros dos demais, para que os pague, por inteiro, ao mesmo senhorio”. De Plácido e Silva (2). O festejado lexicógrafo não dá o étimo. Viterbo registra CABEÇAL: “O que tinha obrigação de responder ao direito senhorio por todos os direitos e foros do casal*, que andava repartido por muitos ou alguns, dos quais cobrava a respectiva porção” . Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo (6).
* Com o sentido de imóvel.
Antenor Nascentes, assim como Antônio Geraldo da Cunha, consagrados etimólogos, sequer registram o termo. Séguier registra e lhe dá o étimo cabeça (7).
Mais uma vez nos socorremos de Moraes, sobre o qual afirmou Leite de Vasconcelos : “Para as usanças clássicas é o melhor guia.” Moraes dá ao termo o seu verdadeiro sentido etimológico: “CABECEL, s.m. ou Pessoeiro: aquelle que está encabeçado em algum praso (sic), ou herdade indivisa, e dá aos achegas, ou coherdeiros e compartes o quinhão das rendas.”(8)
O étimo realmente é cabeça. Viterbo registra “cabeçal”. Trata-se do mesmo radical, com diferentes sufixos: -el e -al(cabecel/cabeçal). Quanto ao sentido da raiz (cabeça), está ele em perfeita harmonia com o significado do termo: É uma espécie de “cabeça” (chefe, principal pessoa), entre os demais foreiros.
5 - COLAÇÃO
“Ato de levar à massa da herança bens que a constituiriam, mas que haviam sido doados em adiantamento à parte que caberia a quem os recebeu” - Piragibe (1).
“... indica o ato pelo qual é o herdeiro obrigado a trazer (ajuntar) à massa comum da herança, ou dos bens do defunto, toda e qualquer espécie de bens que tenha recebido dele, em vida, a fim de com eles concorrer à partilha.” De Plácido e Silva. O autor dá o étimo. “Derivado de Collatio, de confere(sic) (ajuntar, trazer conjuntamente).” - De Plácido e Silva (2).
O vocábulo é também de uso universitário - colação de grau, collatio gradus, ou seja, conferir grau. A base é o latim conferre. Colar grau, em vez de conferir grau. No lugar de conferimento de grau - colação de grau. Interessante é que não temos o verbo collare, mas conferre. Segundo Issac Nicolau Salum (9), trata-se de um verdadeiro caso de derivação regressiva, a qual, nas palavras de Gladstone (10), funcionando como uma derivação às avessas, subtrai algo à raiz, ao contrário da derivação sufixal, que acrescenta. Segundo Isaac, collatio (colação, acusativo) vem de “collatum, supino de um falso (grifei) collare”. De um falso collare, porque collatum é verdadeiramente supino de conferre. Falso ou não, o certo é que collare acabou dando colar (não colar nos exames, mas conferir).
Isaac Salum conta que um de seus alunos, a uma pergunta sua sobre o que vinha a ser colação de grau, respondeu que era a última colação de um curso.
Em resumo, colação vem de collatio - onis, que, por sua vez, vem de collatum. Collare (colar) vem também, por outros caminhos, de collatum, pelas vias da derivação regressiva.
Collatio-onis, em latim, compõe-se de cum + latum, sendo latum o supino de ferre. A idéia de ferre (fero; fers; tuli; latum; ferre) é a de levar, trazer, oferecer, propor, apresentar. Cum dá a idéia de companhia, ajuntamento, reunião. Assim COLLATIO-ONIS (de cum + latum) traz a idéia de ajuntamento, reunião (reunião à massa, ajuntamento à massa comum da herança)
1) Piragibe, Humberto Magalhães e Christóvão Piragibe Tostes Malta
Dicionário Jurídico - Ed. Trabalhistas = 4.ª edição.
2) De Plácido e Silva - Vocabulário Jurídico - 15.ª ed. - Forense - 1998
3) Torrinha - Francisco: Dicionário Latino-Português. Edições Marânus,
Porto - 1945.
4) Arraes de Alencar, José - Vocabulário Latino por Famílias Etimológicas.
Filosofia e Poesia da Linguagem. Civilização Brasileira. 1944.
5) Cunha - Antônio Geraldo da - Dic. Etimológico Nova Fronteira - N.
Fronteira - 1982
6) Viterbo - Fr. Joaquim de Santa Rosa - ELUCIDÁRIO das Palavras Termos e Frases que em Portugal antigamente se usavam e que hoje regularmente se ignoram. Livraria Civilização - Porto-Lisboa. Ed. Crítica - 1966.
7) Séguier - Jaime de - Dic. Prático Ilustrado - Lelo & Irmãos. Porto/1957
8) Morais Silva - Antônio de: Dicionário da Língua Portuguesa -
Fac Simile de 1922 da Ed. De 1813 (Lisboa - Tip. Lacerdina).
9) Sallum - Issac Nicolau - Artigo publicado no jornal “O Estado de S.
Paulo)
10 - Chaves de Melo - Gramática Fundamental da Língua Portuguesa
Acadêmica - Rio. 1967.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fique à vontade para comentar os posts aqui divulgados.