quinta-feira, 1 de abril de 2010

TERMOS JURÍDICOS - SENTIDO ETIMOLÓGICO

Pedro Junqueira Bernardes







O Direito, do latim directum, não á apenas um complexo de regras, leis e preceitos providos de sanção. É sobretudo uma conquista de natureza sócio-cultural que se realiza na linguagem articulada, no fenômeno da fala, sem a qual não passaria de mera aspiração, ou de simples potencialidade. Aliás, a linguagem humana, que se distingue de todos os outros sistemas de comunicação pela dupla articulação, entendendo-se o termo articulação no seu sentido etimológico (do latim artus, membro; articulus, membro pequeno), ou seja, na sua faculdade de se dividir em membros menores (monemas e fonemas), sobre ser verdadeira cultura, é também o veículo de transmissão não só de toda cultura, mas de toda a cultura, e por isso mesmo se faz presente em qualquer realização humana, em toda manifestação do espírito. O próprio pensamento, não fosse o fenômeno da linguagem, não se elaboraria. Pensamos através da linguagem. Já se disse algures e alhures que pensamento e linguagem são como as duas faces da mesma moeda. Impossível a existência isolada.



Como o direito procura preservar as conquistas culturais do mundo ético, entendendo-se aqui o termo ético no sentido scheleriano, ou seja, enquanto atividade humana dirigida à realização de um valor e, dentro do gênero valor, elegendo apenas a espécie que diz respeito ao bem individual e ao bem coletivo, com primazia deste, preservou também a Ciência do Direito o veículo de exteriorização e realização da norma, ou seja, a linguagem necessária, se não para a perpetuação, pelo menos para a durabilidade e permanância da regra. E nem poderia ser diferente, pois como observa com muita propriedade o Prof. Miguel Reale, a ciência é a linguagem mesma, porque na linguagem se expressam os valores comunicáveis. Dando mais um passo adiante, leciona Henry de Page que “C’est en ce sens qu’il est toujours vrai de dire que la cience n’est qu’une langue bien fait” (apud Raul Moreira Pinto - Leasing - Transmutação em Contrato de Compra e Venda).



Assim, não é raro, na Ciência do Direito, palavras e expressões possuírem um conteúdo semântico extremamente fiel às raízes, às bases etimológicas, enquanto o significado trivial se desgarra e evolui, assumindo significações do cotidiano, já distantes do berço cognato. Muitas vezes o sentido técnico-científico, por não se achar desgastado com o uso contumaz e vulgar, conserva com todo o rigor, o verdor da fidelidade radical e o vigor da cultura da época.



A grande maioria dos usuários da língua pode não perceber a raiz rio, em rival (rivus); Deus ( em entusiasmo; pedrinha, em escrúpulo (scrupus); pão (panis), em companheiro, enquanto os iniciados na Ciência do Direito têm plena consciência da idéia de precedência do conhecimento em prejudicial (prae + iudicare); de circunscrição ou área judicial, no substantivo vara (latim vara, bastão conduzido pelos juízes em sinal de sua autoridade, para que fossem conhecidos e não fossem molestados), apenas para citar alguns exemplos do conservadorismo e da especialização de sentido.



Neste pequeno trabalho, examinaremos alguns vocábulos, com ênfase ao estudo daqueles que permanecem fiéis às origens e, por isso mesmo, que despertam maior curiosidade:



ACOITAR - Segundo De Plácido e Silva, “dar guarida ou proteger

criminosos, para que se livrem das penalidades a se-

rem impostas.” (1)

Trata-se de vocábulo de largo uso na esfera penal. Ao

asilar o criminoso, o “coiteiro” está praticando o crime

de favorecimento, previsto no art. 348, do Código Pe-

nal.

Curiosa é a sua etimologia. Embora possa sugerir, a

raiz nada tem a ver com o substantivo “COITO” (de

cum+eo, ir com), nem de BISCOITO (de bis+coctum).

Nem ainda de COITADO (de coctus por coactus, part.

Cogere, obrigar).

ACOITAR vem de ad + cautum, mais o sufixo -ar, for-

mador de verbos da primeira conjugação, a mais fértil.

CAUTUM, que deu COITO, é o particípio passado de

CAVEO - CAVI - CAUTUM (acautelar-se, tomar cui-

dado), com o significado adjetivo de precatado, pru-

dente, caucionado, afiançado, protegido. Depois, já

com a força independente do substantivo, o próprio a-

silo ou refúgio.



ADIÇÃO - A palavra tem dois sentidos. O primeiro sentido é o de

acréscimo, aumento. É sentido corrente.

O outro é técnico-jurídico. Traz a idéia de ida, de acei-

tação, de aproximação. Assim:

a) ADIÇÃO DE BENS - Transferência de bens imobi-

liários (que não deixa de ser uma ida);

b) ADIÇÃO DE HERANÇA - Aceitação de herança;

c) ADIÇÃO DE LEGADO - Aceitação de legado

Tanto num sentido quanto no outro, a palavra vem do

ADIR, com étimos diferentes, conforme se refira a um

ou a outro significado.

ADIR, no sentido trivial de acrescentar, vem do verbo

latino ADDERE, com deslocamento de conjugação. Se-

gundo Edwin Willians (2), e com a simplificação das

dentais geminadas (dd). O verbo latino ADDERE, por

sua vez, vem de ADDO (de AD, proximidade, + DO, do verbo DARE, com o sentido de colocar ao lado). A idéia é, pois, de somar, acrescentar, adir, enfim.

Já ADIR, no sentido de entrar na posse, aceitar, vem do

verbo latino ADIRE, de AD + EO, com o sentido de ir

(eo) para, ir em direção, aproximar-se. Em resumo:





1. ADIR (acrescentar, somar), tem a raiz do verbo

DO - DAS - DEDI - DATUM - DARE;

2. ADIR (aceitar, entrar na posse), tem a raiz do verbo

EO - IS - IVI - ITUM - IRE.



ADÚLTERO - Do latim adulterum. Este da preposição ad, com o sentido de proximidade, mais o pronome alter,altera, alterum (outro).

Assim, ad+alterum, com apofonia do a do radical de alterum, nos veio a forma ADULTERO. O sentido é de proximidade (ad) a outro (alterum). E esse outro nada mais é que o LEITO ou o ÚTERO, de que nos fala a expressão latina: “ADULTERIUM EST AD ALTERUM THORUM VEL UTERUM ACCESSIO: Adultério é a acessão ao leito ou ao útero de outrem.



AFRONTA - Deverbal de “afrontar”. Antenor Nascentes(3) não re- gistra o verbo nem o deverbal. Séguier(4) registra tanto

o verbo quanto o deverbal apenas no sentido corrente.

Antônio Geraldo da Cunha(5) faz rápida referência ao

verbo e seus cognatos. Não menciona contudo a data de seu aparecimento nem o sentido. Francisco Fernandes(6) registra o verbo, sem se referir ao sentido jurídico do termo. Adolfo Coelho(7) consigna o termo

apenas com o sentido comum.

Na linguagem jurídica, que é o que nos interessa,

AFRONTA significa “declaração de maior lanço nas ar-

rematações. Comunicado que o funcionário de leilão

judicial faz ao juiz sobre o maior lanço oferecido, assim

como ao licitante da aceitação do seu lanço. Aurélio (8)

registra esse sentido.

Morais Silva(9), ao registrar o termo, dá a “fórmula curiosa e usual dos porteiros nos leilões e arrematações por autoridade de justiça”

“AFFRONTA FAÇO QUE MAIS NÃO ACHO”.

A par de AFRONTA havia também, hoje desusado, o

termo FRONTA, com aférese do A, com o mesmo sentido. Ainda em Morais: “FRONTEM OS CORREGEDORES AOS PRELADOS QUE CASTIGUEM ESSES

CLÉRIGOS.”

a raiz da palavra é FRONTE, do latim FRONS -FRONTIS: cara, rosto, testa, segundo Torrinha (9). Conseqüentemente a frente, a dianteira. O sentido jurídico está de acordo com o sentido etimológico, uma vez que “dar a notícia, ou comunicar” está em perfeita harmonia com o ato de “colocar na frente, apresentar, pôr-se diante, expor”, que são modos muito eficientes de comunicar alguma coisa a alguém.



ANATOCISMO - A cobrança de juros sobre juros é conhecida sob a

denominação de “anatocismo”.

“É vocábulo que nos vem do latim anatocismus, de

origem grega, significando usura, prêmio composto ou

capitalizado. Desse modo, vem significar a contagem

ou a cobrança de juros sobre juros.”(1)

Importante para o nosso estudo é o seu sentido eti-

mológico: do grego de

e este de de novoemprestar a

juros (10).



ANISTIA Termo empregado em direito penal. Trata-se de ato le-

gislativo que isenta de pena a pessoa condenada ou

processada por crime, geralmente político. Morais Sil-

va registra o termo AMNISTIA (com o m etimológico):

“perdão das injúrias feitas ao Soberano em tempo de

guerra, e revolta (8).

A palavra envolve o significado de esquecimento, pre-

sente no étimo AMNESTIA, do grego AMNESTÉIA,

esquecimento do passado (form. de 

priv. +  lembrança)



ANTICRESE Outro helenismo de uso restrito. Segundo De Plácido

e Silva, “assinala o contrato pelo qual um devedor,

conservando ou não a posse do imóvel, dá ou destina

ao credor, para segurança, pagamento, ou compensa-

ção de dívida, os frutos e rendimentos produzidos pe-

lo mesmo imóvel.”

A definição mantém-se fiel ao Código: “Pode o deve-

dor, ou outro por ele, entregando ao credor um imóvel,

ceder-lhe o direito de perceber, em compensação da

dívida, os frutos e rendimentos.” - Art. 805/CC.

A palavra guarda o sentido etimológico: Do grego

 (contra)empréstimo, uso). Seria como

um empréstimo ou uso anômalo, especialíssimo,

desviado do empréstimo usual, vez que se destina ao pagamento de uma obrigação.



APOSTILA - O termo já anda bem surrado no meio estudantil, cujo

sentido já anda beirando o de simples cópia, na maioria

clandestina, ao arrepio do respeito aos direitos autorais.

O termo é de origem latina, donde herdamos através do

espanhol. O sentido jurídico é o etimológico: “Anota-

ção, registro feito em documento público ou na docu-

mentação relativa a dado servidor.” (11). Segundo Co-

rominas (12) “acotación que aclara o completa un tex-

to (1542). Tomado del b. lat. postilla, íd. Probablemen-

te contracción de la frase post illa ‘después de aquellas

cosas.’ ”.

O certo é que “apostila, apostilha, ou postila” significa

“depois delas”, ou “depois (post) daquelas (illa) coisas”

Juridicamente é uma anotação posterior, feita no docu-

mento. Pedagogicamente seriam as anotações feitas

nos textos, pelos estudantes, depois da aula ou

das explicações ministradas pelo professor: “post

illa”, depois da aula, ou das explicações.



ARRAS Sinal para garantia de um contrato, de uma obriga-

ção. Segundo Nascentes (3), o vocábulo é de origem

semítica, e chegou-nos através do latim, depois de

ter passado pelo grego. A forma latina é arrha. Redu-

ção da forma arrhabo, do grego arrhabon. Significa

penhor. Interessante é que a forma latina arrha é da

primeira declinação (arrha-ae), enquanto a forma ple-

na arrhabo é da terceira: arrhabo-onis. A nossa forma,

arras, veio do acusativo plural da primeira, arras, e

não do acusativo singular arrham. Conforme se sabe,

o acusativo é o caso lexiogênico português. Em latim

o substantivo podia ser usado no singular e no plural.

Em português tornou-se pluralia tantum, vez que não

se usa no singular, somente no plural, arras.



ARTICULAR O verbo “articular” tem dois sentidos básicos. Um

sentido comum, que é “pronunciar”, “proferir”: “Tor-

turado, não articulou uma queixa.” Apud Aurélio (13).

O outro sentido é o etimológico, de uso corrente na

linguagem forense: “a exposição foi feito por artigos”,

ou seja, articulada. Articular tem sua base em artus,

que quer dizer membro.

Artigo vem, pois, de articulus que, por sua vez, vem

artus (membro), mais o sufixo diminutivo (-culus),

e quer dizer membro pequeno. Articular, etimologica-

mente, nada mais é que dividir em membros menores.

É o que faz o advogado quando articula uma peça, di-

vide-a em membros (artus) menores (-culus).



Vale!







1 - De Plácido e Silva - Vocabulário Jurídico - 15.ª ed. - Forense - 1998

2 - Willian - Edwin - Fron latin to Portuguese - MEC/IML - 1973

3 - Nascentes - Antenor - Dic. Etimológico Resumido. INL/MEC-1966

4 - Séguier - Jaime de - Dic. Prático Ilustrado - Lelo & Irmãos. Porto/1957

5 - Cunha - Antônio Geraldo da - Dic. Etimológico Nova Fronteira - N.

Fronteira - 1982

7 - Coelho - Adolfo. Dicionário Manual Etimológico da Língua Portuguesa

P. Plantier - Editora - Lisboa. S/data.

8 - Morais Silva - Antônio de: Dicionário da Língua Portuguesa -

Fac Simile de 1922 da Ed. De 1813 (Lisboa - Tip. Lacerdina).

9 - Torrinha - Francisco: Dicionário Latino-Português. Edições Marânus,

Porto - 1945.

10- Ramis Galvão - Benjamim Franklin - Vocabulário Etimológico, Ortográfico e Prosódico das Palavras Portuguesas Derivadas da Língua

Grega. Livraria Francisco Alves. Rio de Janeiro. 1909.

11- Magalhães - Humberto Piragibe - Dicionário Jurídico. Edições Traba-

lhistas. 4.ª edição.

12 - Corominas - Joan: Breve Diccionario Etimológico de la Lengua Cas-

tellana. Gredos - Madri. 1967.

13 - Holanda Ferreira - Aurélio Buarque de: Novo Dicionário da Língua

Portuguesa - Nova Fronteira - 1.ª edição - 1975.

2 comentários:

  1. Trata-se de estudo muito valioso para todos aqueles que se interessam pela origem dos termos jurídicos.
    Destaco especialmente o estudo feito sobre"arras", muito importante para o Direito Civil Contratual. Também apreciei muito o estudo feito sobre a palavra anistia. Vale lembrar que ela também é usada no Direito Tributário para o perdão de tributos.
    Aguardo novos estudos.
    Um grande abraço!
    Com admiração,

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  2. Boa noite,Isabely.
    Sinceramente agradecido pela leitura e pelo pronunciamento.
    O trabalho continua. Estou em "biandria"!

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