quinta-feira, 1 de abril de 2010

Leasing - Transmutação em Contrato de Compra e Venda.

Raul Moreira Pinto

Juiz aposentado do T.R.T. 3a. Reg.

Pedro Junqueira Bernardes

Advogado





Cuidam esses escritos de peça processual produzida em ação reintegratória, onde o réu, em defesa, buscou, a título de mérito, mas com essência de preliminar, o decreto judicial da inadequação da via eleita. Vale dizer, pretendeu verdadeiramente a extinção do processo, sem julgamento do mérito, por falta de condições da ação.

Para melhor entendimento, passa-se a fazer um breve relatório do ocorrido no processado.:

O réu celebrou com a autora contrato de leasing, sendo que, a partir de determinado momento, suspendeu, sem causa legal, o pagamento das prestações mensais.

A autora, em função da mora do réu, ajuizou ação reintegratória de posse, sendo reintegrada liminarmente no bem arrendado.

O réu, em defesa, alegou, entre outras questões que não pertinem ao presente trabalho, que o contrato de arrendamento se transmudara em de compra e venda, pelo fato de ter pago, junto às prestações mensais, parcelas relativas ao “valor residual garantido”.

Segundo sua tese, se há pagamento do referido “valor residual garantido” antes do término do contrato de arrendamento, este se converte em contrato de compra e venda, já que a quitação daquele valor implicaria em exercício da opção de compra antes do término do prazo do contrato de arrendamento, o que é vedado em lei.

Para sustentar o seu entendimento, trouxe o réu à colação acórdão, pela ementa, de teor seguinte:

“ARRENDAMENTO MERCANTIL - Leasing - Contrato - Valor residual ínfimo - Compra e venda a prestação disfarçada - Custo ou despesa operacional - Glosa - Não se pode pretender que uma operação real de compra e venda a prazo se beneficie de disposições ditadas especificamente para o arrendamento mercantil ainda que aquela operação preencha formalmente os requisitos contratuais estabelecidos para esta última.

Se se trata de compra e venda, as parcelas pagas não podem ser consideradas como custo ou despesa operacional da pessoa jurídica adquirente do bem, porque, na verdade, de arrendamento mercantil não se cuida. Não se pode admitir que uma lei persiga um objetivo ilícito, desonesto, iníquo. Desse modo, a sua interpretação deve ter natureza teleológica (finalística), fundada na consistência axiológica(valorizativa) do Direito ( MIGUEL REALE0)Votos vencidos ( TRF 1a. Reg. Emb. Infr. em Ap. Civ. n.º 29261 - Rel. Juiz Eustáquio Silveira - J. 30.05.95 - DJU 26.06.95).

Os dispositivos legais sobre os quais se discutiram as questões são os seguintes:

Lei n.º 6.099/74

“Artigo 5º - Os contratos de arrendamento mercantil conterão as seguintes disposições:

a) prazo do contrato;

b) valor de cada contraprestação por períodos determinados não superiores a um semestre (prazo posteriormente aumentado);

c) opção de compra ou renovação de contrato, como faculdade do arrendatário:

d) preço para opção de compra ou critério para sua fixação, quando for estipulada esta causa;

Parágrafo único - ‘......’ omisssis

“...............”

Artigo 11 - Serão considerados como custo ou despesa operacional da pessoa jurídica arrendatária as contraprestações pagas ou creditadas por força do contrato de arrendamento mercantil.

Parágrafo primeiro - a aquisição pelo arrendatário de bens arrendados em desacordo com as disposições desta lei será considerada operação de compra e venda a prestação.

Parágrafo segundo - ‘....’ omissis

Parágrafo terceiro - ‘...’ omissis

Parágrafo quarto - ‘....’ omissis”

Resolução (BCB) n.º 980/84

“Artigo 11 - A operação será considerada como de compra e venda a prestação se a opção de compra for exercida antes do término da vigência do contrato de arrendamento.”

Na impugnação à contestação, na parte que interessa ao presente, a Autora deduziu as seguintes razões, que são essência do presente trabalho:

“Não há de vingar a tese da defesa, relativamente à descaracterização do contrato de leasing, pelas razões jurídicas e fáticas que se seguem.

O parágrafo primeiro, do artigo 11, da Lei n.º 6.099/74, utiliza-se do termo “aquisição”. O parágrafo segundo do mesmo artigo dispõe que o preço da compra será o total das contraprestações pagas durante a vigência do arrendamento, acrescido da parcela paga a título de preço de aquisição.

Disso se conclui que a aquisição do bem arrendado necessariamente se dá no fim do prazo de arrendamento, com o exercício da opção de compra. Deflui-se, ainda, que, se o preço da aquisição, definido no parágrafo único do artigo 15, da mesma Lei 6.099/74, não for integralmente pago, o que ocorrerá no término de vigência do contrato, não haverá se falar em conversão do arrendamento em compra e venda por infringência a dispositivos outros da mesma Lei n.º 6.099/74.

Na verdade, o contrato de arrendamento mercantil é complexo, nele coexistindo basicamente dois contratos, um de arrendamento propriamente dito e outro de promessa unilateral de venda.

Marcos Bernardes de Mello cita, expressamente, como exemplos típicos de negócio jurídico complexo, o de arrendamento, o de franquia, o de transporte, com fornecimento de hospedagem e alimentação e contrato de empreitada com fornecimento de material. (Teoria do Fato Jurídico - Plano de Validade, Saraiva, 1.995, pag. 62).

E é complexo, pois nele existem concomitantemente dois contratos, de arrendamento propriamente dito e de promessa unilateral de venda. Eventualmente, pode haver até um terceiro, de mandato.

Ao arrendar um bem o arrendador (termo utilizado pelo legislador) transfere a posse direta para o arrendatário, por determinado prazo, recebendo uma remuneração.

Por força até mesmo da natureza desse arrendamento, há cláusula resolutiva. No caso dos autos, é expressa.

Vicente Ráo, valendo-se de disposição do Código Civil Alemão, ensina que “Resolutiva é a condição cujo implemento faz cessar os efeitos do ato jurídico: ‘quando um ato jurídico é praticado sob condição resolutiva, sua eficácia cessa no momento em que esta condição se realiza, momento a partir do qual o estado anterior de direito se restabelece.” (Ato Jurídico, Revista dos Tribunais, 1.997, pag. 257).

Já na promessa unilateral de venda, tem-se uma condição suspensiva, que, segundo ensinamento do mesmo autor, “subordina o início da eficácia do ato jurídico à verificação ou não-verificação de um evento futuro e incerto”. (op. citada, mesma página)

Isto é, na condição resolutiva, enquanto essa não se realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito estabelecido. E “subordina-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva e, enquanto esta não se verificar, não terá adquirido o direito a que ele visa” nas excelentes definições dos artigos 125 e 127, do Projeto do Código brasileiro.

Feitas essas digressões doutrinárias, passemos a examinar o caso concreto à luz delas.

No primeiro negócio jurídico, o arrendamento stricto sensu, que poderíamos chamar de principal, o arrendatário entra na posse direta do bem arrendado, exercendo o direito de usá-lo desde a conclusão do mesmo negócio jurídico e vigorando enquanto não se realize condição resolutiva. (a condição resolutiva invocada pela Autora é o inadimplemento do contrato, por falta de pagamento das prestações por parte do arrendatário).

Explicitando, enquanto o arrendatário estiver pagando as prestações, pode legitimamente exercer todos os direitos inerentes ao arrendamento.

No segundo negócio jurídico, promessa unilateral de venda, há uma condição suspensiva, qual seja, a opção para a compra do bem e a aquisição que se darão no término da vigência do primeiro negócio jurídico.

Ora, a cláusula suspensiva da promessa unilateral de compra somente será acionada para aquisição do direito (de opção de compra e conseqüente efetivação desta) se necessariamente não for acionada a cláusula resolutiva (inadimplemento da obrigação de pagar).

Vale dizer, somente poderá falar-se em compra e venda se o arrendatário pagar toda e pontualmente a dívida, nesse último caso se o credor-arrendador não admitir alguma mora, ao término do contrato de arrendamento.

E isto é mais do que óbvio: se acionada a condição resolutiva, jamais adquirirá o arrendatário o direito de opção e compra, pela singelíssima razão de não se ter verificado a condição suspensiva, que é exatamente o pagamento total do preço. Nas palavras do Projeto do Código, “não terá adquirido o direito” prometido de venda.

Repetindo-se, pedindo vênia pela insistência: se o preço não foi pago integralmente e por isso foi denunciado o contrato, não se pode nem mesmo imaginar a transmutação do contrato de leasing em compra e venda. Aliás, nem mesmo se pode falar em compra e venda do bem arrendado, já que, segundo a lei que trata da matéria, aquela se concretiza com o pagamento de todo o preço. Assim, inaplicável o disposto no parágrafo primeiro, do artigo 11, da Lei n.º 6.099/74.

Na verdade, a intenção do legislador, ao dispor sobre considerar a aquisição do bem arrendado como compra e venda, é clara: coibir fraude fiscal, caracterizada pela utilização de benefícios fiscais dados ao arrendatário, quando verdadeiramente a operação é de compra e venda travestida de leasing, agindo o arrendatário com arrière-pensée.

Sem dúvida que a Lei n.º 6.099/74 é de natureza tributária. Como bem reza a sua ementa, cuida o diploma de tratamento tributário das operações de arrendamento mercantil. Assim, quando dita o artigo 11, pelo parágrafo primeiro, que a aquisição pelo arrendatário de bens arrendados em desacordo com as disposições da mesma lei será considerada operação de compra e venda a prestação, quer a regra dizer que operação terá o tratamento tributário da compra e venda.

E isto tem razão de ser, pois, como afirmado, bem poderia alguma operação titulada de arrendamento encobrir verdadeira compra e venda, com o objetivo de lesar o fisco, já que o arrendatário goza de favores fiscais que não tem naquele primeiro tipo de contrato.

Mas isso sequer é cogitado nos presentes autos. Fora de dúvida que as partes buscaram celebrar contrato de arrendamento mercantil, não outro, e nos “dissídios que acaso se formem, a missão do juiz terá de se circunscrever à apuração da vontade dos contratantes, em um processo de pura reconstituição.” (Darcy Bessone, op. citada, pag. 33/34 - destaque da Autora). E se dúvida pudesse haver, em melhor situação não ficaria o Réu, pois a lei lhe proíbe alegar simulação.

A ratio do dispositivo não é a de transmudar a natureza do contrato de arrendamento, para tê-lo como mero contrato de compra e venda, com todas as conseqüências de natureza civil.

Veja-se que o referido parágrafo primeiro, do artigo 11, da Lei n.º 6.099/74, se refere, e não poderia ser diferente, ao caput. É certo que o parágrafo excepciona a regra do artigo ao qual se subordina, ou explicita-o. No ensinamento de Vicente Ráo, “Comumente, o conteúdo do parágrafo deve ligar-se e sujeitar-se à prescrição contida na disposição principal como o particular ao geral.” (O Direito e a Vida dos Direitos, Revista dos Tribunais, 3a. edição, vol. I, pag. 250, destaque nosso).

Ora, se o artigo 11, da multicitada Lei n.º 6.099/74, trata exclusivamente de Direito Fiscal, o seu parágrafo não pode lançar efeitos além da prescrição naquele contida. Vale dizer, não tem força para modificar natureza jurídica de instituto de outro ramo do Direito.

Repetindo, o que o legislador quis dizer, e não mais do que isso, é que o benefício fiscal do arrendatário, consistente em considerar como custo ou despesa operacional as contraprestações pagas, não será admitido se a aquisição dos bens arrendados se fizer em desacordo com as disposições da referida lei, sendo a operação, evidentemente para efeitos fiscais, tida como compra e venda, operação esta que leva tratamento diferenciado e menos benéfico para o contribuinte arrendatário.

Jamais preconizou a conversão de um contrato híbrido, como o é o de arrendamento (locação, promessa unilateral de venda e, às vezes, mandato - conf. Fran Martins, Contratos e Obrigações Comerciais, Forense, 14a. ed., pág. 459) no de compra e venda simples e pura, matéria que é completamente estranha ao Direito Fiscal. De observar-se que o legislador se utilizou da expressão “será considerada operação de compra e venda” e não do termo “conversão”, tecnicamente correto para a hipótese sustentada na defesa.

Segundo ensina Orlando Gomes, “Um contrato nulo pode produzir os efeitos de um contrato diverso. A esse fenômeno chama-se conversão. Para o mesmo autor, para que ocorra a conversão “é preciso: que o contrato nulo contenha os requisitos substanciais e formais de outro; b) que as partes quereriam o outro contrato, se tivessem tido conhecimento da nulidade.” (Contratos, Forense, 12a. edição, pág. 217 - destaques da Autora)

No caso sub examine, de fácil percepção que as partes contratantes jamais pretenderam celebrar contrato de compra e venda.

Mesmo que pudesse colocar em questão os termos claríssimos do contrato, viria em socorro da Autora o disposto no artigo 85, do C.C.B., onde se regra que na interpretação das declarações de vontade há de prevalecer, sempre, intenção daquele que as fez.

É certo ainda que a Autora não tem como atividade a compra e venda de veículos ou de quaisquer outros bens, sendo inimaginável que tivesse querido, via contrato de arrendamento mercantil, realizar uma compra e venda.

Não fora isso, é de boa doutrina pressupor-se que o legislador, sempre e necessariamente, se utilize de termos técnico-jurídicos de forma correta. Se o parágrafo primeiro do artigo 11, da Lei 6.099/74, cuidasse do mencionado instituto, teria utilizado o termo “conversão”, não o termo “considerado”.

E é bom ter em mente a observação de Henry de Page, no sentido que “Nous croyons, au surplus, qu’il est particulièrement souhaitable d’eviter des confusions de mots, parce qu’elles entrainent toujours des confusions de choses. C’est en ce sens qu’il est toujours vrai de dire que la science n’est qu’une langue bien faite.” (apud Darcy Bessone, Do Contrato - Teoria Geral, Forense, ed. 1987, pág,. 314).

Mesmo que se admitisse, absurdamente, que a malsinada disposição do parágrafo primeiro, do artigo 11, lança efeitos fora do Direito Fiscal e tenha realmente querido dizer “conversão”, a solução mais equânime pela não observância de alguma das condições postas no artigo 5º, da citada lei, seria a decretação de ineficácia da cláusula infringente, subordinando-a à prescrição legal. Caso típico de aplicação do princípio heteronômico, pelo qual o Estado-legislador estabelece preceitos, que são verdadeiramente cláusulas contratuais obrigatórias.

No caso do arrendamento, por ser negócio jurídico complexo, admite aquele a separabilidade dos atos.

Ensina Marcos Bernardes de Mello que, “Quando se trata de negócios jurídicos complexos, tem-se que a separabilidade é possível, conforme o caso, desde que preservada a integridade do ato jurídico e de sua finalidade, esta conforme a intenção dos figurantes.” (op citada, pág,. 64, destaque da Autora).

Ora, se as partes indubitavelmente procuraram acertar um contrato de arrendamento e sendo este negócio complexo, perfeitamente possível a separabilidade de cláusulas eventualmente ilícitas. O mesmo Marcos Bernardes de Mello cita, como exemplo, o testamento, onde geralmente as cláusulas são separáveis, pelo que a nulidade “pode restringir-se a esta, sem afetar o todo”. (id.ib., pág,. 64/65)

Nesse mesmo sentido, leciona Serpa Lopes, explicitando que devem ser afastadas “aquelas cláusulas consignadas em contrário ao regime legal, preestabelecido.” (Curso de Direito Civil, Freitas Bastos, vol.iii, 4a. edição, pág. 97). Ou na lição de Darcy Bessone, “A vontade das partes não deve ser sacrificada senão no caso de se tornar inviável toda a tentativa de salvá-la.”(op. citada, pág. 228).

Daí inafastável a conclusão: cláusulas que contrariem a lei devem ser, somente elas, tidas como nulas e, portanto, como não escritas. Jamais poderá ter-se como írrito todo o negócio jurídico, em obediência ao princípio da incontagiação da nulidade.

Na verdade, a descaracterização do contrato buscada pelo Réu tem como único fito vantagem de natureza processual, pois, como se pode ver, o mesmo Réu está de há muito em mora. Isto é, não deu execução ao contrato de arrendamento e muito menos ao que pretende que seja, o de compra e venda. Entretanto, quer que se lhe retorne a posse do bem arrendado.

Não se argumente com o artigo 11, da Resolução n.º 980/84, do Banco Central do Brasil, que, a bem da verdade, de forma prudente, descaracteriza o arrendamento apenas se a opção de compra for exercida antes do término da vigência do contrato de arrendamento.

Primeiro, porque inocorreu opção de compra, o que somente sucederia no término do contrato de arrendamento.

Cumpre ressaltar que o contrato ajustado entre Autora e Réu estabelece a constituição de uma provisão para fazer frente ao valor residual garantido, o que obviamente não se confunde com opção de compra. O referido contrato de arrendamento é claro quanto à oportunidade do exercício da opção de compra, inclusive dispondo sobre o acertamento final de saldo devedor, no caso de aquisição.

Em segundo lugar, mesmo que de tal provisionamento pudesse tirar-se a ilação que implicaria em opção de compra, o que se admite apenas para argumentar, não vingaria a tese do Réu. Com efeito, o fato de vir a disposição autonomamente, isto é, desvinculada de outra subordinante, diferentemente do que ocorre na relação do parágrafo primeiro do artigo 11 com o caput, da Lei 6.099/74, não empresta àquele dispositivo força obrigatória.

É que o Banco Central do Brasil não tem competência para criar ou modificar direitos via regulamentação de caráter meramente administrativo.

Somente lei federal (o direito a ser objeto de legislação é de competência exclusiva da União, pois versa sobre matéria civil e comercial) poderia dispor sobre extinção de certa forma de obrigação por conversão em outra de natureza diversa. À toda evidência, falece competência ao Banco Central do Brasil para regrar sobre a liberdade de contratar, que tem sua fonte nos direitos individuais constitucionalmente protegidos, onde se destaca o princípio da legalidade.

Ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer senão em virtude de lei, o sabem até os mais desprovidos de conhecimentos jurídicos. E lei, aqui, é no sentido estrito, isto é, na sua feitura devem ser observados os requisitos de validade, como aprovação, sanção, publicação, etc.

Registre-se, ainda no mesmo tema, que a função legislativa, ainda mais em se tratando de direitos constitucionalmente garantidos, é indelegável.

Ademais, a Lei n.º 6.099/74 não delegou, e nem o poderia fazer, poderes para o Banco Central do Brasil legislar sobre direito comercial e civil.

Veja-se que a delegação conferida se resume nos artigos 2º, parágrafo primeiro, 6º, 7º, 8º, 9º, parágrafo 2º, 10, 16 e 23, da Lei n.º 6.009/74, onde não se encontra nenhuma disposição permitindo que o Banco Central venha regrar sobre conversão de contratos, por eventual descumprimento de condições estabelecidas na citada lei e muito menos, obviamente, na própria Resolução 980/94.

Não se olvide a lição de Serpa Lopes, para quem, após afirmar que não possuem força de lei as circulares, avisos e decisões ministeriais, diz sabiamente que “A função do regulamento é eminentemente integrativa da lei, constituindo um desenvolvimento, uma especificação, complementação do pensamento legislativo. Assim, o regulamento só obriga tanto que não fira os princípios substanciais da lei a que está subordinado.” (op. citada, pág. 72, destaques da Autora).

Assim, totalmente inválida a disposição do artigo 11, da Resolução 980/84, por padecer de vício de origem.

Não fossem suficientes as razões acima expostas para afastar a tese da conversibilidade do contrato, é mais do que certo que inexiste qualquer ilegalidade ou ilicitude nas condições pactuadas para o arrendamento.

Entre os requisitos postos no artigo 5º não há qualquer um que proíba seja concertado o pagamento de uma provisão, para o caso de o arrendatário fazer a opção pela compra ao término do contrato.

Igualmente, não há proibição para que o “valor residual garantido” seja estabelecido quando do momento da contratação.

O mesmo se diz relativamente ao disposto no artigo 9º, letras e alíneas, da Resolução n.º 980/84, isto se pudesse tal Resolução criar direito novo.

Dentre as regulamentações legitimamente delegáveis e aquelas de legitimidade duvidosa ali postas, nenhuma proibição ao ajustamento do valor residual de garantia, quando da contratação, bem como ao pagamento desse mesmo valor residual diluído nos locativos, ao longo do prazo do contrato.

O princípio da liberdade contratual, calcada no da legalidade, garantido constitucionalmente, orienta no sentido de que as partes podem ajustar todas as cláusulas que lhes forem convenientes, tendo como único limite a proibição oriunda de prescrição legal. Esta é a lição de Darcy Bessone: “Sendo justo o contrato, segue-se que aos contratantes deve ser reconhecida ampla liberdade de contratar, só limitada por considerações de ordem pública e pelos bons costumes. Assim, enquanto forem observados esses limites, podem as partes convencionar aquilo que lhes aprouver, o que, de resto, constitui um aspecto da liberdade individual, consubstanciada no princípio de que é permitido tudo que não é proibido. (op. citada, pág,. 32/33).

O acórdão, trazido à colação pela ementa, na defesa, envolve claramente questão fiscal trazida ao Judiciário. Por isso que o julgado considerou como ilegal a dedução dos benefícios fiscais, já que a operação realizada buscava burlar legislação tributária, e, assim, deveria ter tratamento fiscal de compra e venda a prestação.

Aliás, a questão, ao que parece, é de todo desinteressante para o Réu, já que tudo indica que nem mesmo ostenta a condição de pessoa jurídica, para se valer dos aludidos benefícios fiscais.

Por todas essas razões, não há como se admitir sequer irregularidades no contrato de arrendamento celebrado entre Autora e Réu.”

De ver-se que algumas das questões suscitadas foram examinadas à luz da Resolução n.º 980/84, do Banco Central do Brasil, revogada pela de n.º 2.309/96, emanada daquela mesma instituição.

Entretanto, os argumentos alinhados não sofrem qualquer arranhão decorrente da nova regulamentação, no que pertine aos temas tratados nestes escritos.

Destaque-se a alínea “a”, do inciso VII, do artigo 7º, da citada Resolução, que permitiu o pagamento do valor residual garantido “a qualquer momento durante a vigência do contrato”, sem que isso venha a se caracterizar como “exercício da opção de compra”.

Embora, segundo o nosso entendimento, tanto a resolução revogada como a nova não tenham validade enquanto pretendam definir institutos de Direito Comercial, pode a referida alínea “a”, do inciso VII, da Resolução n.º 2.309/96, ser alinhada como parâmetro interpretativo.

Com efeito, como sustentado na impugnação, nenhuma razão de direito existe para que se tenha o pagamento do valor residual garantido ao longo da vigência do contrato como “exercício da opção de compra”.

O artigo 10, da Resolução n.º 2.309/96 praticamente repete o artigo 11, da Resolução revogada. No que interessa ao tema, o novo dispositivo continua falando de “operação” de arrendamento mercantil, o que reforça o entendimento de que trata de matéria exclusivamente fiscal.

O artigo 33, da nova Resolução, de forma mais radical que o seu correspondente (artigo 41, da Resolução revogada), dita que “As operações que se realizarem em desacordo com as disposições deste Regulamento não se caracterizam como de arrendamento mercantil.” Como o dispositivo revogado, não esclarece qual negócio jurídico estaria então caracterizado.

No curso dos estudos para a feitura da impugnação, foi realizada pesquisa jurisprudencial, tendo sido encontrados alguns acórdãos acolhendo a tese do réu. Transcrevem-se a seguir, dois deles, os mais representativos, pelas sua ementas, com dois breves comentários.

“Arrendamento Mercantil - Ação de Reintegração de Posse - Liminar - A retirada da opção de compra do contrato, substituindo-a pelo pagamento do resíduo antecipadamente junto com as contraprestações, descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil, tornando-o uma compra e venda a prestação ou mútuo. A opção de compra é requisito do contrato, conforme letra “c”, do artigo da Lei 6.099/74. Deixando de ser arrendamento mercantil deixa de existir contrato de depósito entre as partes. Não havendo esbulho possessório não pode haver reintegração de posse. Decisão atacada desconstituída. Agravo Provido”. (T.A. do Rio Grande do Sul, GI n.º 196148571, 3a. Câmara Cível, Rel. Gaspar Marques Batista)

“Reintegratória de Posse - Arrendamento Mercantil - Desconfiguração - A cobrança antecipada do VRB configura opção de compra, descaracterizando o contrato, que passa a ser de compra e venda a prazo. Inviável, nessas condições, a reintegratória de posse, por ausentes os requisitos do CPC - 927. Apelo improvido.” (T.A. do Rio Grande do Sul, Ap.C. n.º 197145105, 4a. Câmara Cível, Rel. Ulderico Ceccato, 02.10.97).

Estas decisões, data venia, partiram de premissa que não tem arrimo legal nem jurídico. Como já dito anteriormente, inexiste qualquer impedimento para que o arrendatário constitua uma provisão para aquisição futura do bem, com regular acerto de contas ao final e o pleno e livre exercício do direito de opção pelo mesmo arrendatário.

Equivoca-se ainda o primeiro decisum, pedindo novamente vênia pela discordância, quando afirma que, no caso, “deixa de existir contrato de depósito entre as partes”. No arrendamento, embora contrato complexo, não há o de depósito; a posse direta do arrendatário é decorrência do arrendamento mesmo.

Existem, a bem da verdade, em número menor, acórdãos que seguem o entendimento desses escritos, sustentando a nulidade das cláusulas acaso infringentes da lei ou então a natureza fiscal do dispositivo que fala em transmutação do contrato de arrendamento no de compra e venda a prestação. (APC n.º 197071814PC, TARGS, 9a. Câmara Cível, Rel. Maria Isabel de Azevedo Souza, APC n.º 196234116, TARGS, 1a. C. Cível, Rel. Maria Isabel Broggini)

Em resumo, a impugnação produzida, como se pode ver da transcrição acima, baseou a tese da inconversibilidade do contrato de arrendamento em quatro pilares: a) a natureza fiscal da regra do artigo 11, da Lei n.º 6.099/74, sem alcance no campo do Direito Civil; b) a incontagiação do negócio jurídico por eventual cláusula contrária à legislação que regulamenta o arrendamento mercantil, admitindo prevalecimento de entendimento contrário ao da letra “a”; c) na pressuposição de inacolhimento das teses postas nas letras “a” e “b”, a impossibilidade jurídica de ocorrer a conversão do contrato, antes do término do prazo de sua vigência e da quitação do preço total contratado; e d) invalidade de dispositivo regulamentar (Resolução do Banco Central), por vício de origem.

Procuramos acrescentar mais fundamentos às teses postas nos julgados que entenderam pela licitude e incolumidade dos contratos de arrendamento, acreditando que tais temas ainda não foram suficientemente explorados, fato que nos animou a fazer publicar os presentes escritos, trazendo os referidos temas à reflexão dos que se interessarem pelo assunto.

Com certeza, o desate da questão, pela sentença de primeiro grau, fornecerá preciosos subsídios para a continuação dos estudos sobre o tema.




























Leasing - Transmutação em Contrato de Compra e Venda.



Raul Moreira Pinto

Juiz aposentado do T.R.T. 3a. Reg.

Pedro Junqueira Bernardes

Advogado





Cuidam esses escritos de peça processual produzida em ação reintegratória, onde o réu, em defesa, buscou, a título de mérito, mas com essência de preliminar, o decreto judicial da inadequação da via eleita. Vale dizer, pretendeu verdadeiramente a extinção do processo, sem julgamento do mérito, por falta de condições da ação.

Para melhor entendimento, passa-se a fazer um breve relatório do ocorrido no processado.:

O réu celebrou com a autora contrato de leasing, sendo que, a partir de determinado momento, suspendeu, sem causa legal, o pagamento das prestações mensais.

A autora, em função da mora do réu, ajuizou ação reintegratória de posse, sendo reintegrada liminarmente no bem arrendado.

O réu, em defesa, alegou, entre outras questões que não pertinem ao presente trabalho, que o contrato de arrendamento se transmudara em de compra e venda, pelo fato de ter pago, junto às prestações mensais, parcelas relativas ao “valor residual garantido”.

Segundo sua tese, se há pagamento do referido “valor residual garantido” antes do término do contrato de arrendamento, este se converte em contrato de compra e venda, já que a quitação daquele valor implicaria em exercício da opção de compra antes do término do prazo do contrato de arrendamento, o que é vedado em lei.

Para sustentar o seu entendimento, trouxe o réu à colação acórdão, pela ementa, de teor seguinte:

“ARRENDAMENTO MERCANTIL - Leasing - Contrato - Valor residual ínfimo - Compra e venda a prestação disfarçada - Custo ou despesa operacional - Glosa - Não se pode pretender que uma operação real de compra e venda a prazo se beneficie de disposições ditadas especificamente para o arrendamento mercantil ainda que aquela operação preencha formalmente os requisitos contratuais estabelecidos para esta última.

Se se trata de compra e venda, as parcelas pagas não podem ser consideradas como custo ou despesa operacional da pessoa jurídica adquirente do bem, porque, na verdade, de arrendamento mercantil não se cuida. Não se pode admitir que uma lei persiga um objetivo ilícito, desonesto, iníquo. Desse modo, a sua interpretação deve ter natureza teleológica (finalística), fundada na consistência axiológica(valorizativa) do Direito ( MIGUEL REALE0)Votos vencidos ( TRF 1a. Reg. Emb. Infr. em Ap. Civ. n.º 29261 - Rel. Juiz Eustáquio Silveira - J. 30.05.95 - DJU 26.06.95).

Os dispositivos legais sobre os quais se discutiram as questões são os seguintes:

Lei n.º 6.099/74

“Artigo 5º - Os contratos de arrendamento mercantil conterão as seguintes disposições:

a) prazo do contrato;

b) valor de cada contraprestação por períodos determinados não superiores a um semestre (prazo posteriormente aumentado);

c) opção de compra ou renovação de contrato, como faculdade do arrendatário:

d) preço para opção de compra ou critério para sua fixação, quando for estipulada esta causa;

Parágrafo único - ‘......’ omisssis

“...............”

Artigo 11 - Serão considerados como custo ou despesa operacional da pessoa jurídica arrendatária as contraprestações pagas ou creditadas por força do contrato de arrendamento mercantil.

Parágrafo primeiro - a aquisição pelo arrendatário de bens arrendados em desacordo com as disposições desta lei será considerada operação de compra e venda a prestação.

Parágrafo segundo - ‘....’ omissis

Parágrafo terceiro - ‘...’ omissis

Parágrafo quarto - ‘....’ omissis”

Resolução (BCB) n.º 980/84

“Artigo 11 - A operação será considerada como de compra e venda a prestação se a opção de compra for exercida antes do término da vigência do contrato de arrendamento.”

Na impugnação à contestação, na parte que interessa ao presente, a Autora deduziu as seguintes razões, que são essência do presente trabalho:

“Não há de vingar a tese da defesa, relativamente à descaracterização do contrato de leasing, pelas razões jurídicas e fáticas que se seguem.

O parágrafo primeiro, do artigo 11, da Lei n.º 6.099/74, utiliza-se do termo “aquisição”. O parágrafo segundo do mesmo artigo dispõe que o preço da compra será o total das contraprestações pagas durante a vigência do arrendamento, acrescido da parcela paga a título de preço de aquisição.

Disso se conclui que a aquisição do bem arrendado necessariamente se dá no fim do prazo de arrendamento, com o exercício da opção de compra. Deflui-se, ainda, que, se o preço da aquisição, definido no parágrafo único do artigo 15, da mesma Lei 6.099/74, não for integralmente pago, o que ocorrerá no término de vigência do contrato, não haverá se falar em conversão do arrendamento em compra e venda por infringência a dispositivos outros da mesma Lei n.º 6.099/74.

Na verdade, o contrato de arrendamento mercantil é complexo, nele coexistindo basicamente dois contratos, um de arrendamento propriamente dito e outro de promessa unilateral de venda.

Marcos Bernardes de Mello cita, expressamente, como exemplos típicos de negócio jurídico complexo, o de arrendamento, o de franquia, o de transporte, com fornecimento de hospedagem e alimentação e contrato de empreitada com fornecimento de material. (Teoria do Fato Jurídico - Plano de Validade, Saraiva, 1.995, pag. 62).

E é complexo, pois nele existem concomitantemente dois contratos, de arrendamento propriamente dito e de promessa unilateral de venda. Eventualmente, pode haver até um terceiro, de mandato.

Ao arrendar um bem o arrendador (termo utilizado pelo legislador) transfere a posse direta para o arrendatário, por determinado prazo, recebendo uma remuneração.

Por força até mesmo da natureza desse arrendamento, há cláusula resolutiva. No caso dos autos, é expressa.

Vicente Ráo, valendo-se de disposição do Código Civil Alemão, ensina que “Resolutiva é a condição cujo implemento faz cessar os efeitos do ato jurídico: ‘quando um ato jurídico é praticado sob condição resolutiva, sua eficácia cessa no momento em que esta condição se realiza, momento a partir do qual o estado anterior de direito se restabelece.” (Ato Jurídico, Revista dos Tribunais, 1.997, pag. 257).

Já na promessa unilateral de venda, tem-se uma condição suspensiva, que, segundo ensinamento do mesmo autor, “subordina o início da eficácia do ato jurídico à verificação ou não-verificação de um evento futuro e incerto”. (op. citada, mesma página)

Isto é, na condição resolutiva, enquanto essa não se realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito estabelecido. E “subordina-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva e, enquanto esta não se verificar, não terá adquirido o direito a que ele visa” nas excelentes definições dos artigos 125 e 127, do Projeto do Código brasileiro.

Feitas essas digressões doutrinárias, passemos a examinar o caso concreto à luz delas.

No primeiro negócio jurídico, o arrendamento stricto sensu, que poderíamos chamar de principal, o arrendatário entra na posse direta do bem arrendado, exercendo o direito de usá-lo desde a conclusão do mesmo negócio jurídico e vigorando enquanto não se realize condição resolutiva. (a condição resolutiva invocada pela Autora é o inadimplemento do contrato, por falta de pagamento das prestações por parte do arrendatário).

Explicitando, enquanto o arrendatário estiver pagando as prestações, pode legitimamente exercer todos os direitos inerentes ao arrendamento.

No segundo negócio jurídico, promessa unilateral de venda, há uma condição suspensiva, qual seja, a opção para a compra do bem e a aquisição que se darão no término da vigência do primeiro negócio jurídico.

Ora, a cláusula suspensiva da promessa unilateral de compra somente será acionada para aquisição do direito (de opção de compra e conseqüente efetivação desta) se necessariamente não for acionada a cláusula resolutiva (inadimplemento da obrigação de pagar).

Vale dizer, somente poderá falar-se em compra e venda se o arrendatário pagar toda e pontualmente a dívida, nesse último caso se o credor-arrendador não admitir alguma mora, ao término do contrato de arrendamento.

E isto é mais do que óbvio: se acionada a condição resolutiva, jamais adquirirá o arrendatário o direito de opção e compra, pela singelíssima razão de não se ter verificado a condição suspensiva, que é exatamente o pagamento total do preço. Nas palavras do Projeto do Código, “não terá adquirido o direito” prometido de venda.

Repetindo-se, pedindo vênia pela insistência: se o preço não foi pago integralmente e por isso foi denunciado o contrato, não se pode nem mesmo imaginar a transmutação do contrato de leasing em compra e venda. Aliás, nem mesmo se pode falar em compra e venda do bem arrendado, já que, segundo a lei que trata da matéria, aquela se concretiza com o pagamento de todo o preço. Assim, inaplicável o disposto no parágrafo primeiro, do artigo 11, da Lei n.º 6.099/74.

Na verdade, a intenção do legislador, ao dispor sobre considerar a aquisição do bem arrendado como compra e venda, é clara: coibir fraude fiscal, caracterizada pela utilização de benefícios fiscais dados ao arrendatário, quando verdadeiramente a operação é de compra e venda travestida de leasing, agindo o arrendatário com arrière-pensée.

Sem dúvida que a Lei n.º 6.099/74 é de natureza tributária. Como bem reza a sua ementa, cuida o diploma de tratamento tributário das operações de arrendamento mercantil. Assim, quando dita o artigo 11, pelo parágrafo primeiro, que a aquisição pelo arrendatário de bens arrendados em desacordo com as disposições da mesma lei será considerada operação de compra e venda a prestação, quer a regra dizer que operação terá o tratamento tributário da compra e venda.

E isto tem razão de ser, pois, como afirmado, bem poderia alguma operação titulada de arrendamento encobrir verdadeira compra e venda, com o objetivo de lesar o fisco, já que o arrendatário goza de favores fiscais que não tem naquele primeiro tipo de contrato.

Mas isso sequer é cogitado nos presentes autos. Fora de dúvida que as partes buscaram celebrar contrato de arrendamento mercantil, não outro, e nos “dissídios que acaso se formem, a missão do juiz terá de se circunscrever à apuração da vontade dos contratantes, em um processo de pura reconstituição.” (Darcy Bessone, op. citada, pag. 33/34 - destaque da Autora). E se dúvida pudesse haver, em melhor situação não ficaria o Réu, pois a lei lhe proíbe alegar simulação.

A ratio do dispositivo não é a de transmudar a natureza do contrato de arrendamento, para tê-lo como mero contrato de compra e venda, com todas as conseqüências de natureza civil.

Veja-se que o referido parágrafo primeiro, do artigo 11, da Lei n.º 6.099/74, se refere, e não poderia ser diferente, ao caput. É certo que o parágrafo excepciona a regra do artigo ao qual se subordina, ou explicita-o. No ensinamento de Vicente Ráo, “Comumente, o conteúdo do parágrafo deve ligar-se e sujeitar-se à prescrição contida na disposição principal como o particular ao geral.” (O Direito e a Vida dos Direitos, Revista dos Tribunais, 3a. edição, vol. I, pag. 250, destaque nosso).

Ora, se o artigo 11, da multicitada Lei n.º 6.099/74, trata exclusivamente de Direito Fiscal, o seu parágrafo não pode lançar efeitos além da prescrição naquele contida. Vale dizer, não tem força para modificar natureza jurídica de instituto de outro ramo do Direito.

Repetindo, o que o legislador quis dizer, e não mais do que isso, é que o benefício fiscal do arrendatário, consistente em considerar como custo ou despesa operacional as contraprestações pagas, não será admitido se a aquisição dos bens arrendados se fizer em desacordo com as disposições da referida lei, sendo a operação, evidentemente para efeitos fiscais, tida como compra e venda, operação esta que leva tratamento diferenciado e menos benéfico para o contribuinte arrendatário.

Jamais preconizou a conversão de um contrato híbrido, como o é o de arrendamento (locação, promessa unilateral de venda e, às vezes, mandato - conf. Fran Martins, Contratos e Obrigações Comerciais, Forense, 14a. ed., pág. 459) no de compra e venda simples e pura, matéria que é completamente estranha ao Direito Fiscal. De observar-se que o legislador se utilizou da expressão “será considerada operação de compra e venda” e não do termo “conversão”, tecnicamente correto para a hipótese sustentada na defesa.

Segundo ensina Orlando Gomes, “Um contrato nulo pode produzir os efeitos de um contrato diverso. A esse fenômeno chama-se conversão. Para o mesmo autor, para que ocorra a conversão “é preciso: que o contrato nulo contenha os requisitos substanciais e formais de outro; b) que as partes quereriam o outro contrato, se tivessem tido conhecimento da nulidade.” (Contratos, Forense, 12a. edição, pág. 217 - destaques da Autora)

No caso sub examine, de fácil percepção que as partes contratantes jamais pretenderam celebrar contrato de compra e venda.

Mesmo que pudesse colocar em questão os termos claríssimos do contrato, viria em socorro da Autora o disposto no artigo 85, do C.C.B., onde se regra que na interpretação das declarações de vontade há de prevalecer, sempre, intenção daquele que as fez.

É certo ainda que a Autora não tem como atividade a compra e venda de veículos ou de quaisquer outros bens, sendo inimaginável que tivesse querido, via contrato de arrendamento mercantil, realizar uma compra e venda.

Não fora isso, é de boa doutrina pressupor-se que o legislador, sempre e necessariamente, se utilize de termos técnico-jurídicos de forma correta. Se o parágrafo primeiro do artigo 11, da Lei 6.099/74, cuidasse do mencionado instituto, teria utilizado o termo “conversão”, não o termo “considerado”.

E é bom ter em mente a observação de Henry de Page, no sentido que “Nous croyons, au surplus, qu’il est particulièrement souhaitable d’eviter des confusions de mots, parce qu’elles entrainent toujours des confusions de choses. C’est en ce sens qu’il est toujours vrai de dire que la science n’est qu’une langue bien faite.” (apud Darcy Bessone, Do Contrato - Teoria Geral, Forense, ed. 1987, pág,. 314).

Mesmo que se admitisse, absurdamente, que a malsinada disposição do parágrafo primeiro, do artigo 11, lança efeitos fora do Direito Fiscal e tenha realmente querido dizer “conversão”, a solução mais equânime pela não observância de alguma das condições postas no artigo 5º, da citada lei, seria a decretação de ineficácia da cláusula infringente, subordinando-a à prescrição legal. Caso típico de aplicação do princípio heteronômico, pelo qual o Estado-legislador estabelece preceitos, que são verdadeiramente cláusulas contratuais obrigatórias.

No caso do arrendamento, por ser negócio jurídico complexo, admite aquele a separabilidade dos atos.

Ensina Marcos Bernardes de Mello que, “Quando se trata de negócios jurídicos complexos, tem-se que a separabilidade é possível, conforme o caso, desde que preservada a integridade do ato jurídico e de sua finalidade, esta conforme a intenção dos figurantes.” (op citada, pág,. 64, destaque da Autora).

Ora, se as partes indubitavelmente procuraram acertar um contrato de arrendamento e sendo este negócio complexo, perfeitamente possível a separabilidade de cláusulas eventualmente ilícitas. O mesmo Marcos Bernardes de Mello cita, como exemplo, o testamento, onde geralmente as cláusulas são separáveis, pelo que a nulidade “pode restringir-se a esta, sem afetar o todo”. (id.ib., pág,. 64/65)

Nesse mesmo sentido, leciona Serpa Lopes, explicitando que devem ser afastadas “aquelas cláusulas consignadas em contrário ao regime legal, preestabelecido.” (Curso de Direito Civil, Freitas Bastos, vol.iii, 4a. edição, pág. 97). Ou na lição de Darcy Bessone, “A vontade das partes não deve ser sacrificada senão no caso de se tornar inviável toda a tentativa de salvá-la.”(op. citada, pág. 228).

Daí inafastável a conclusão: cláusulas que contrariem a lei devem ser, somente elas, tidas como nulas e, portanto, como não escritas. Jamais poderá ter-se como írrito todo o negócio jurídico, em obediência ao princípio da incontagiação da nulidade.

Na verdade, a descaracterização do contrato buscada pelo Réu tem como único fito vantagem de natureza processual, pois, como se pode ver, o mesmo Réu está de há muito em mora. Isto é, não deu execução ao contrato de arrendamento e muito menos ao que pretende que seja, o de compra e venda. Entretanto, quer que se lhe retorne a posse do bem arrendado.

Não se argumente com o artigo 11, da Resolução n.º 980/84, do Banco Central do Brasil, que, a bem da verdade, de forma prudente, descaracteriza o arrendamento apenas se a opção de compra for exercida antes do término da vigência do contrato de arrendamento.

Primeiro, porque inocorreu opção de compra, o que somente sucederia no término do contrato de arrendamento.

Cumpre ressaltar que o contrato ajustado entre Autora e Réu estabelece a constituição de uma provisão para fazer frente ao valor residual garantido, o que obviamente não se confunde com opção de compra. O referido contrato de arrendamento é claro quanto à oportunidade do exercício da opção de compra, inclusive dispondo sobre o acertamento final de saldo devedor, no caso de aquisição.

Em segundo lugar, mesmo que de tal provisionamento pudesse tirar-se a ilação que implicaria em opção de compra, o que se admite apenas para argumentar, não vingaria a tese do Réu. Com efeito, o fato de vir a disposição autonomamente, isto é, desvinculada de outra subordinante, diferentemente do que ocorre na relação do parágrafo primeiro do artigo 11 com o caput, da Lei 6.099/74, não empresta àquele dispositivo força obrigatória.

É que o Banco Central do Brasil não tem competência para criar ou modificar direitos via regulamentação de caráter meramente administrativo.

Somente lei federal (o direito a ser objeto de legislação é de competência exclusiva da União, pois versa sobre matéria civil e comercial) poderia dispor sobre extinção de certa forma de obrigação por conversão em outra de natureza diversa. À toda evidência, falece competência ao Banco Central do Brasil para regrar sobre a liberdade de contratar, que tem sua fonte nos direitos individuais constitucionalmente protegidos, onde se destaca o princípio da legalidade.

Ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer senão em virtude de lei, o sabem até os mais desprovidos de conhecimentos jurídicos. E lei, aqui, é no sentido estrito, isto é, na sua feitura devem ser observados os requisitos de validade, como aprovação, sanção, publicação, etc.

Registre-se, ainda no mesmo tema, que a função legislativa, ainda mais em se tratando de direitos constitucionalmente garantidos, é indelegável.

Ademais, a Lei n.º 6.099/74 não delegou, e nem o poderia fazer, poderes para o Banco Central do Brasil legislar sobre direito comercial e civil.

Veja-se que a delegação conferida se resume nos artigos 2º, parágrafo primeiro, 6º, 7º, 8º, 9º, parágrafo 2º, 10, 16 e 23, da Lei n.º 6.009/74, onde não se encontra nenhuma disposição permitindo que o Banco Central venha regrar sobre conversão de contratos, por eventual descumprimento de condições estabelecidas na citada lei e muito menos, obviamente, na própria Resolução 980/94.

Não se olvide a lição de Serpa Lopes, para quem, após afirmar que não possuem força de lei as circulares, avisos e decisões ministeriais, diz sabiamente que “A função do regulamento é eminentemente integrativa da lei, constituindo um desenvolvimento, uma especificação, complementação do pensamento legislativo. Assim, o regulamento só obriga tanto que não fira os princípios substanciais da lei a que está subordinado.” (op. citada, pág. 72, destaques da Autora).

Assim, totalmente inválida a disposição do artigo 11, da Resolução 980/84, por padecer de vício de origem.

Não fossem suficientes as razões acima expostas para afastar a tese da conversibilidade do contrato, é mais do que certo que inexiste qualquer ilegalidade ou ilicitude nas condições pactuadas para o arrendamento.

Entre os requisitos postos no artigo 5º não há qualquer um que proíba seja concertado o pagamento de uma provisão, para o caso de o arrendatário fazer a opção pela compra ao término do contrato.

Igualmente, não há proibição para que o “valor residual garantido” seja estabelecido quando do momento da contratação.

O mesmo se diz relativamente ao disposto no artigo 9º, letras e alíneas, da Resolução n.º 980/84, isto se pudesse tal Resolução criar direito novo.

Dentre as regulamentações legitimamente delegáveis e aquelas de legitimidade duvidosa ali postas, nenhuma proibição ao ajustamento do valor residual de garantia, quando da contratação, bem como ao pagamento desse mesmo valor residual diluído nos locativos, ao longo do prazo do contrato.

O princípio da liberdade contratual, calcada no da legalidade, garantido constitucionalmente, orienta no sentido de que as partes podem ajustar todas as cláusulas que lhes forem convenientes, tendo como único limite a proibição oriunda de prescrição legal. Esta é a lição de Darcy Bessone: “Sendo justo o contrato, segue-se que aos contratantes deve ser reconhecida ampla liberdade de contratar, só limitada por considerações de ordem pública e pelos bons costumes. Assim, enquanto forem observados esses limites, podem as partes convencionar aquilo que lhes aprouver, o que, de resto, constitui um aspecto da liberdade individual, consubstanciada no princípio de que é permitido tudo que não é proibido. (op. citada, pág,. 32/33).

O acórdão, trazido à colação pela ementa, na defesa, envolve claramente questão fiscal trazida ao Judiciário. Por isso que o julgado considerou como ilegal a dedução dos benefícios fiscais, já que a operação realizada buscava burlar legislação tributária, e, assim, deveria ter tratamento fiscal de compra e venda a prestação.

Aliás, a questão, ao que parece, é de todo desinteressante para o Réu, já que tudo indica que nem mesmo ostenta a condição de pessoa jurídica, para se valer dos aludidos benefícios fiscais.

Por todas essas razões, não há como se admitir sequer irregularidades no contrato de arrendamento celebrado entre Autora e Réu.”

De ver-se que algumas das questões suscitadas foram examinadas à luz da Resolução n.º 980/84, do Banco Central do Brasil, revogada pela de n.º 2.309/96, emanada daquela mesma instituição.

Entretanto, os argumentos alinhados não sofrem qualquer arranhão decorrente da nova regulamentação, no que pertine aos temas tratados nestes escritos.

Destaque-se a alínea “a”, do inciso VII, do artigo 7º, da citada Resolução, que permitiu o pagamento do valor residual garantido “a qualquer momento durante a vigência do contrato”, sem que isso venha a se caracterizar como “exercício da opção de compra”.

Embora, segundo o nosso entendimento, tanto a resolução revogada como a nova não tenham validade enquanto pretendam definir institutos de Direito Comercial, pode a referida alínea “a”, do inciso VII, da Resolução n.º 2.309/96, ser alinhada como parâmetro interpretativo.

Com efeito, como sustentado na impugnação, nenhuma razão de direito existe para que se tenha o pagamento do valor residual garantido ao longo da vigência do contrato como “exercício da opção de compra”.

O artigo 10, da Resolução n.º 2.309/96 praticamente repete o artigo 11, da Resolução revogada. No que interessa ao tema, o novo dispositivo continua falando de “operação” de arrendamento mercantil, o que reforça o entendimento de que trata de matéria exclusivamente fiscal.

O artigo 33, da nova Resolução, de forma mais radical que o seu correspondente (artigo 41, da Resolução revogada), dita que “As operações que se realizarem em desacordo com as disposições deste Regulamento não se caracterizam como de arrendamento mercantil.” Como o dispositivo revogado, não esclarece qual negócio jurídico estaria então caracterizado.

No curso dos estudos para a feitura da impugnação, foi realizada pesquisa jurisprudencial, tendo sido encontrados alguns acórdãos acolhendo a tese do réu. Transcrevem-se a seguir, dois deles, os mais representativos, pelas sua ementas, com dois breves comentários.

“Arrendamento Mercantil - Ação de Reintegração de Posse - Liminar - A retirada da opção de compra do contrato, substituindo-a pelo pagamento do resíduo antecipadamente junto com as contraprestações, descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil, tornando-o uma compra e venda a prestação ou mútuo. A opção de compra é requisito do contrato, conforme letra “c”, do artigo da Lei 6.099/74. Deixando de ser arrendamento mercantil deixa de existir contrato de depósito entre as partes. Não havendo esbulho possessório não pode haver reintegração de posse. Decisão atacada desconstituída. Agravo Provido”. (T.A. do Rio Grande do Sul, GI n.º 196148571, 3a. Câmara Cível, Rel. Gaspar Marques Batista)

“Reintegratória de Posse - Arrendamento Mercantil - Desconfiguração - A cobrança antecipada do VRB configura opção de compra, descaracterizando o contrato, que passa a ser de compra e venda a prazo. Inviável, nessas condições, a reintegratória de posse, por ausentes os requisitos do CPC - 927. Apelo improvido.” (T.A. do Rio Grande do Sul, Ap.C. n.º 197145105, 4a. Câmara Cível, Rel. Ulderico Ceccato, 02.10.97).

Estas decisões, data venia, partiram de premissa que não tem arrimo legal nem jurídico. Como já dito anteriormente, inexiste qualquer impedimento para que o arrendatário constitua uma provisão para aquisição futura do bem, com regular acerto de contas ao final e o pleno e livre exercício do direito de opção pelo mesmo arrendatário.

Equivoca-se ainda o primeiro decisum, pedindo novamente vênia pela discordância, quando afirma que, no caso, “deixa de existir contrato de depósito entre as partes”. No arrendamento, embora contrato complexo, não há o de depósito; a posse direta do arrendatário é decorrência do arrendamento mesmo.

Existem, a bem da verdade, em número menor, acórdãos que seguem o entendimento desses escritos, sustentando a nulidade das cláusulas acaso infringentes da lei ou então a natureza fiscal do dispositivo que fala em transmutação do contrato de arrendamento no de compra e venda a prestação. (APC n.º 197071814PC, TARGS, 9a. Câmara Cível, Rel. Maria Isabel de Azevedo Souza, APC n.º 196234116, TARGS, 1a. C. Cível, Rel. Maria Isabel Broggini)

Em resumo, a impugnação produzida, como se pode ver da transcrição acima, baseou a tese da inconversibilidade do contrato de arrendamento em quatro pilares: a) a natureza fiscal da regra do artigo 11, da Lei n.º 6.099/74, sem alcance no campo do Direito Civil; b) a incontagiação do negócio jurídico por eventual cláusula contrária à legislação que regulamenta o arrendamento mercantil, admitindo prevalecimento de entendimento contrário ao da letra “a”; c) na pressuposição de inacolhimento das teses postas nas letras “a” e “b”, a impossibilidade jurídica de ocorrer a conversão do contrato, antes do término do prazo de sua vigência e da quitação do preço total contratado; e d) invalidade de dispositivo regulamentar (Resolução do Banco Central), por vício de origem.

Procuramos acrescentar mais fundamentos às teses postas nos julgados que entenderam pela licitude e incolumidade dos contratos de arrendamento, acreditando que tais temas ainda não foram suficientemente explorados, fato que nos animou a fazer publicar os presentes escritos, trazendo os referidos temas à reflexão dos que se interessarem pelo assunto.

Com certeza, o desate da questão, pela sentença de primeiro grau, fornecerá preciosos subsídios para a continuação dos estudos sobre o tema.

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